Oficialmente o Kremlin esta satisfeito com o telefone entre os Presidentes russo e norte-americano, na quarta-feira, 12, que marcou o reatar das conversações bilaterais depois de três anos de "silêncio esmagador" no corredor diplomático entre as duas maiores potências nucleares do mundo.

Mas daí a ver como evidente que a guerra na Ucrânia vai acabar de um dia para o outro e que Washington e Moscovo vão mesmo tirar todas as pedras do caminho, voltando a uma normalidade como se os três anos de guerra na Ucrânia não tivessem acontecido, é... exagerado.

Alguns analistas, como MarK Sleboda, especialista em política internacional e engenheiro nuclear veterano da Marinha dos EUA, entendem que Moscovo não vai aceitar de caras quaisquer propostas de Donald Trump que não passem pelo crivo de segurança de Moscovo.

Isto, porque o ocidente, europeus e norte-americanos já demonstraram que não são, na perspectiva russa, de confiança, como, de resto, o registo histórico do conflito ucraniano o demonstra, desde logo nos Acordos de Minsk I e II.

Estes acordos, assinados em 2014 e 2015, envolvendo russos, ucranianos e a Europa Ocidental (Alemanha, França e Reino Unido, entre outros, no âmbito da Organização de Segurança e Cooperação Europeia `OSCE'), visavam estabilizar o leste ucraniano depois do golpe de Estado em Kiev, onde, com apoio dos EUA, foi desalojado do poder Viktor Yanukovich, o Presidente pró-russo eleito em 2010.

Esse golpe de Estado levou as regiões do leste ucraniano (Donbass), Donetsk e Lugansk a rebelarem-se contra Kiev, fazendo que que o novo poder desse início a uma guerra interna, que, entre 2014 e 2022, aquando da invasão russa, em 24 de Fevereiro desse ano, fez mais de 14 mil mortos.

Isso, porque os Acordos de Minsk I e II nunca foram cumpridos pela parte europeia ocidental porque, como admitiram a antiga chanceler alemã Angela Merkel e o ex-Presidente francês, François Hollande (ambos do lado direito de Putin na foto), estes serviram apenas para entreter Moscovo enquanto armavam a Ucrânia de forma a preparar o país para a guerra com a Rússia.

Agora, face a este passado assente em desconfiança, mesmo que o Kremlin não esconda a satisfação pelo retomar do diálogo institucional com Washington, dificilmente qualquer discurso de Trump poderá fazer parar a guerra na Ucrânia, sem que as intenções sejam traduzidas por acordos à prova de "traição" como sucedeu com Minsk I e Minsk II.

Ou seja, as expectativas de um fim da guerra para breve não estão assentes na realidade mas sim em desejos, porque a Rússia, como sublinha Mark Sleboda, entre outros, como John Mearsheimer, autor e professor da Universidade de Chicago, especialista em relações internacionais, tem um conjunto concreto e claro de exigências que quer ver cumpridas antes de assinar qualquer documento, até porque está a vencer a guerra, agrega mais território e fragiliza a estrutura militar de Kiev a cada dia que passa.

E essas exigências passam por obrigar o Presidente Volodymyr Zelensky a realizar eleições, que já deveriam ter tido lugar em Maio de 2024, adiadas no contexto da Lei Marcial, inserir na Constituição a garantia de que a Ucrânia não adere à NATO nem à União Europeia, que as cinco regiões anexadas em 2014 (Crimeia) e 2022 (Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhia) são russas e que a língua, cultura e religião russas são respeitas...

Além destas condições, Moscovo vai exigir manter um aparelho de segurança e garantia de que a Ucrânia não vai, depois da guerra, ser rearmada e "ocupada" pela NATO de forma oficiosa, o que exigirá uma diluição clara da soberania de Kiev face a Moscovo.

Estas pesadas condições deverão ser recusadas por Volodymyr Zelensky e pelos seus aliados da União Europeia, mas às quais Washington, segundo já anunciou Trump, pode dar luz verde, mesmo que com pequenos acertos a negociar entre si Vladimir Putin.

A chefe da diplomacia da União Europeia, Kaja Kallas, já veio ameaçar a Rússia de que os europeus vão continuar a municiar Kiev de armas e dinheiro para manter a resistência armada aos avanços russos, se Moscovo não aceitar que Bruxelas tenha um lugar à mesa das negociações entre russos e norte-americanos, das quais também os próprios ucranianos foram arredados.

Se o reatamento das relações bilaterais vai prosseguir de velas desfraldadas ou de forma mais contida, à bolina, ver-se-á já esta sexta-feira, 14, quando o vice-Presidente dos EUA, JD Vance, o secretário de Estado, Marco Rubio, o secretário da Defesa, Pete Hegseth, o director da CIA, John Ratcliffe, e o enviado de Trump para o Médio Oriente, Steve Witkoff, e não, como seria de esperar, o seu enviado para o Leste Europeu, Mike Kellogg, se sentarem à mesa com a parte russa, cuja composição ainda não era conhecida a meio da manhã.

No entanto, é provável que o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, e o director da secreta de Moscovo, o SVR, Sergey Naryshkin, e, eventualmente, o vice-presidente do conselho de segurança e antigo Presidente, Dmitry Medvedev, possam ir inopinadamente a Munique para esse encontro...

É, no entanto, de notar que este encontro, que é um passo de gigante no reatar das relações entre as duas superpotências militares, foi anunciado por Donald Trump, numa das sucessivas e frenéticas conversas com os jornalistas em Washington, com esta frase: "O encontro vai ter lugar em Munique, onde a Rússia vai estar com a nossa gente".

Trump acrescentou depois que os ucranianos também foram convidados, sem que se ficasse a saber a modalidade do encontro entre "pessoas de topo" dos três países, embora, até esta quinta-feira, 13, Moscovo não estivesse, como sucede desde 2022, na lista dos convidados desta conferência onde estão dezenas de Chefes de Estado e de Governo.

A súbita aproximação entre russos e norte-americanos, que já estava anunciada com a chegada ao poder de Trump, está a enfurecer os europeus, tendo, depois de Kaja Kallas ameaçado os russos, vem agora o Presidente francês dizer que não aceitará qualquer aordo que não conte com a participação dos europeus e dos ucranianos.

Emmanuel Macron, citado por The Guardian, disse que "só o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, pode negociar em nome do seu país com a Rússia o fim da guerra", fazendo notar, numa entrevista ao Financial Times, que "um acordo de paz não é uma capitulação" e que assim sendo "são más notícias para todos".

Para já, sendo que esta sexta-feira, 14, pode ser um dia fundamental para se perceber o desenho final do fim do conflito, Zelensky já fez saber pelo seu conselheiro para a comunicação, Dmytro Lytvyn, que "não estão previstos quaisquer conversas com os russos em Munique", porque Kiev quer antes ter "uma posição comum entre ucranianos, europeus e norte-americanos".

Como o Novo Jornal abordou já, ao chegar à Casa Branca, Trump levou com ele uma totalmente nova estratégia, que passa, sendo isso já evidente, por diluir a relevância da Europa na sua política externa, e com isso, o "problema ucraniano" criado por Joe Biden, o seu antecessor, voltando-se para o Índo-Pacífico, onde os EUA têm o seu verdadeiro "adversário", que é a China e que Washington está empenhado em conter "custe o que custar".

A "condenação" de Kiev por parte dos EUA, é resultado directo do facto de Washington precisar de tentar reduzir as relações estratégicas entre russos e chineses, por saber que os EUA já não são a potência do passado, assente em esquadras de porta-aviões hoje inadequadas aos novos sistemas de guerra e não podem estar "excessivamente distendidos" para a Europa Ocidental.

Até porque, como têm feito notar vários especialistas militares, no Pentagono sabe-se que a China, com a sua gigantesca capacidade industrial, ligada aos inesgotáveis recursos russos, energia, minerais estratégicos e, entre outros, alimentares, é praticamente imbatível.