Há precisamente três anos, a 24 de Fevereiro de 2022, o mundo estava colado aos ecrãs de sites e televisões atónito com os tanques russos a atravessarem as fronteiras da Ucrânia para uma invasão que, com avanços e recuos, ainda não acabou e ninguém sabe quando acabará.
Com a chegada de Donald Trump à Casa Branca, para o seu segundo mandato, o mesmo mundo que há três anos estava sem saber como seria o amanhã após o avanço das tropas de moscovo, ficou à espera de que o conflito no leste ucraniano acabasse rapidamente.
Nem o leste ucraniano deixou de ser um devastador campo de morte nem o histórico reencontro entre americanos e russos na Arábia Saudita permitiu antecipar um prazo para o fim do conflito do qual o mundo está cansado... mas algo mudou drasticamente.
O que está já claro, e é completamente diferente hoje com Trump no poder em Washington em comparação com o seu antecessor, Joe Biden como inquilino da Casa Branca é que o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, deixou de ter nos norte-americanos os amigos para todas as ocasiões... e necessidades.
O mais selvagem conflito na Europa desde a II Guerra Mundial, como todas as guerras, sabe-se como começou, no longínquo ano de 2014, com o golpe de Estado organizado pelos EUA e União Europeia, que destronou Viktor Yanukovich, o Presidente pró-russo, mas ainda não se sabe como vai terminar.
Sabe-se com sólida certeza que se Zelensky quiser manter o esforço de guerra com a Rússia, que, no campo de batalha soma e segue com vitória atrás de vitória, vai ter de contar com os recursos internos e com os aliados europeus, porque os americanos estão num acelerado fade out do apoio a Kiev.
Alias, as trocas de "mimos" entre Trump e Zelensky, ou Zelensky e Elon Musk, o, para já, preferido conselheiro da Casa Branca, têm crescido no tom e na agressividade, a ponto de o Presidente dos EUA ter chamado "ditador sem eleições" ao Presidente da Ucrânia e este ripostar dizendo que o outro vive "num mundo de desinformação".
Os europeus não podem substituir os americanos
Isto, quando em Kiev se sabe que nem a Ucrânia nem o regime de Zelensky vão conseguir subsistir sem o apoio norte-americano, porque, apesar de uma persistente frente verbal em Bruxelas de apoio "até onde for preciso", faltam meios para o fazer entre os Estados europeus.
Mas o contraste entre americanos e europeus não podia ser mais claro: no dia em que a invasão russa faz três anos, esta segunda-feira, 24 de Fevereiro de 2025, chegaram a Kiev os principais dirigentes da União Europeia para reafirmar o apoio e claramente desafiar Moscovo e... Washington.
Ursula von der Leyen, a alemã que é a presidente da Comissão Europeia, e António Costa, o português que preside ao Conselho Europeu, chegaram à capital ucraniana com a mesma retórica do início da invasão, ignorando totalmente o que se passou neste país em 2014, como se tudo tivesse começado em 2022, com os tanques russos a atravessar a fronteira ucraniana.
"Estamos em Kiev porque a Ucrânia é a Europa e nesta luta pela sobrevivência, não é só o destino da Ucrânia que está em causa, é também o destino da Europa", disse von der Leyen, numa legenda a acompanhar um vídeo da sua chegada de comboio a Kiev nas redes sociais, com o português ao lado.
Ursula von der Leyen falava numa mensagem publicada nas redes sociais, acompanhada de um vídeo da chegada de comboio a Kiev ao lado do presidente do Conselho Europeu, o português António Costa.
Com os dois líderes europeus, numa das mais vigorosas demonstrações de apoio à Ucrânia, desafio à Rússia e um claro recado aos Estados Unidos de que a Europa não depende de Washington para defender Zelensky, estavam quase todos os comissários europeus, que são os ministros do Governo europeu.
Com o fade out americano, tudo indica que a opção em Bruxelas foi acelerar o apoio e o empenho europeus a Kiev... e isso mesmo ficou claro quando, ainda no comboio, em direcção à capital ucraniana, Ursula Leyen disse que chegou o momento de "acelerar a entrega de apoio militar" aos ucranianos.
A opção europeia de passar por cima daquilo que parece já uma decisão de Washington em fechar a torneira a Kiev é, segundo vários analistas, um risco pouco reflectido pela liderança europeia, porque, como nota, por exemplo, o especialista militar português, o major-general Agostinho Costa, "os europeus não vão conseguir substituir os americanos".
A Europa ocidental, incluindo a União Europeia e o Reino Unido, não possuem um tecido industrial militar que possa produzir armamento e munições capaz de garantir o municiamento das necessidades da Ucrânia para continuar a resistir aos avanços russos.
E com essa garantia, enfatizam ainda analistas como o professor norte-americano da Universidade de Columbia e um prestigiado analista de política internacional e geoestratégia, John Mearsheimer, face à superioridade incontestável de Moscovo, a persistência dos europeus, sem o suporte americano, apenas vai aumentar de forma dramática o número de mortos e a destruição no contexto deste conflito.
Ninguém sabe o número de baixas
Apesar da informação e contra-informação espalhada nos media internacionais por Kiev e Moscovo no que toca a mortos e feridos nesta guerra, é hoje impossível obter números com um grau de certeza minimamente aproximado à realidade, havendo apenas uma garantia: de um e do outro lado são dramáticos e a verdade só anos depois do conflito terminar será conhecida.
Facto é que a Ucrânia está com evidentes dificuldades em conseguir substituir as baixas na frente de combate, ficando isso demonstrado pelas sucessivas reduções da idade mínima de recrutamento, estando actualmente a ser discutido em Kiev passar essa idade dos 25 para os 18 anos.
Enquanto, do lado russo, no que é reconhecido inclusive por Volodymyr Zelensky, não apenas cresce o número de combatentes na frente como o Exército russo é hoje três vezes superior ao que era em Fevereiro de 2022.
Outro facto reconhecido pelos ucranianos, incluindo o seu Presidente e o chefe da intelligentsia militar, Kyryll Budanov, é que a produção industrial militar russa não tem parado de crescer, aumentando muito a diferença de capacidade para a Ucrânia, que tem estado a ver o fluxo do apoio militar ocidental em perigoso retrocesso, não apenas o americano mas também, apesar das promessas contrárias, o da Europa ocidental.
E foi este cenário de fragilidade ucraniana que levou Budanov, no que foi noticiado pela imprensa ucraniana antes de chegar à ocidental, há cerca de um mês, a dizer no Parlamento ucraniano, numa reunião restrita, que se o cenário não mudar, existe um risco de o país não sobreviver até Agosto.
O que esteve, está e estará em causa
Três anos após a invasão russa, é de recordar o que esteve por detrás dessa opção radical do Kremlin.
E é hoje consensual que foi a expansão da NATO para leste, tendo o Presidente Vladimir Putin avisado há anos, especialmente em 2007, numa Conferência de Segurança de Munique, na Alemanha, que se tal viesse a suceder, Moscovo veria isso como uma "ameaça existencial".
Apesar dos avisos do Kremlin, a anterior Administração Biden manteve firme a iniciativa de abrir a porta da NATO à Ucrânia e à Geórgia, a linha vermelha mais carregada dos russos, o que foi o detonador para ser dada a ordem de avanço dos blindados sobre a fronteira ucraniana a 24 de Fevereiro de 2022.
É claro hoje, como o era em alguns fóruns à época, mas fora do radar dos media ocidentais mainstream, que o objectivo de Biden & Co. não era estender a passadeira vermelha da NATO a KIev, era criar as condições para abrir uma frente de guerra com a Rússia, usando os ucranianos como o exército ao serviço dos ocidentais, equipado com as suas armas mais sofisticadas e poderosas.
Com isso, acreditava-se em Washington e Bruxelas, apoiados numa sucessão de pacotes de sanções económicas a Moscovo jamais vista, que era possível fragilizar o poder de Putin e promover o seu colapso, mudando o regime em Moscovo para um mais aveludado face ao ocidente.
As coisas não correram como esperado pelos estrategas americanos, porque os russos moldaram a sua economia à guerra, procuraram alternativas a oriente, China e Índia, desde logo, para fazer fluir os seus recursos energéticos, a base da sua textura económica, substituíram as importações por produção interna e, apesar da dureza das sanções, e dos efeitos nefastos que estas, indubitavelmente, tiveram, o país não soçobrou.
Pelo contrário, como o FMI e o Banco Mundial o atestam, apesar da sua indiscutível escassa simpatia para o Kremlin, a Federação Russa está a crescer mais que os seus "parceiros" ocidentais e a inflação é alta mas controlada.
E, no fim, notam ainda as duas instituições de Breton Woods, se se olhar para a situação na perspectiva do PIB PPC (Paridade de Poder de Compra), que é o método actualmente visto como mais eficaz para medir a performance das economias mundiais, porque reflecte melhor o impacto no bolso das famílias, então a Rússia está mesmo melhor que alguns gigantes, como Alemanha ou Japão, em 4º, apenas atrás da China, EUA e Índia.
Apesar deste aparente sucesso no esforço de resistir às sanções ocidentais, um recorde global sem paralelo, Moscovo tem pela frente, se nada mudar nos próximos tempos, um crescente desafio para evitar a deterioração da sua economia e o crescente impacto social da punição ocidental, especialmente nos sectores dos transportes aéreos, farmacêutica, indústrias tecnológicas...
Bruxelas e Kiev à espera de um convite
Com três anos de mortandade nas trincheiras do leste europeu, que trouxe à memória os episódios grotescos da brutalidade da I Guerra Mundial, a guerra das trincheiras, a esperança passa actualmente pelas negociações entre Moscovo e Washington, com ucranianos e europeus à espera de um convite para se sentarem à mesa.
Há mesmo alguns analistas que remetem para o palco da pressão para que esse convite chegue toda a fanfarronice da União Europeia, que, sabendo não poder manter a promessa de "apoio a Kiev até onde for preciso", aguarda que Moscovo prefira não arriscar e aceite os europeus à mesa das negociações para acabar com o conflito.
O mesmo estará na mente de Volodymyr Zelensky, porque, como o próprio já afirmou publicamente, a Ucrânia "não vai sobreviver se a guerra continuar sem o apoio dos EUA", vindo agora dizer que está disponível para deixar o poder, que é uma exigência de Trump e Putin, se isso for garantia de uma "paz justa".
E a questão da legitimidade democrática de Zelensky pode mesmo estar a ser enfatizada para que se transforme num obstáculo fácil de transpor nas conversações, porque ao não ter realizado eleições em Maio de 2024, ao abrigo da Lei Marcial em vigor no país, o Presidente ucraniano posicionou-se como uma pedra na engrenagem que pode ser facilmente removida.
Um plano, várias possibilidades
Por definir para que esse passo venha a ser dado está o plano americano de paz para a Ucrânia, que está a ser cozinhado em conjunto com os russos e que, no fim, deverá ficar consolidado com uma vitória, com algumas cedências, de Moscovo.
O Kremlin quer que a NATO aceite a sua condição de país neutral plasmada na Constituição, que Kiev aceite que as quatro regiões anexadas em 2022 (Zaporizhia, Kherson, Donetsk e Lugansk) e a Crimeia (2014) sejam igualmente reconhecidas como parte inteira da Federação Russa, e que a língua, cultura e religião russas sejam legalmente respeitadas na Ucrânia que sobreviver a este conflito.
Os EUA, ao que tudo indica, estão disponíveis para alinhar com Moscovo nestas pretensões, impondo algumas cedências, eventualmente territoriais, forçando Putin a aceitar não atravessar o Rio Dniepre com as suas exigências, ignorando os seus "aliados" europeus e Kiev.
Mas o que pretende Washington dos russos - que deve ter sido discutido na conversa de hora e meia entre Trump e Putin há duas semanas - em troca deste alinhamento com as suas exigências na Ucrânia?
Dificilmente Trump quererá apenas, como tem repetido insistentemente, acabar com o morticínio, e reaver os mais de 300 mil milhões USD já injectados na Ucrânia no contexto desta guerra, desde 2014, com direitos excepcionais da exploração dos recursos mineiros do país.
A China é o alvo americano?
O que alguns analistas têm vindo a erguer como teoria é que os americanos estão a deixar a Europa para se concentrar nas suas prioridades geoestratégicas do Indo-Pacífico, onde está iminente uma confrontação com Pequim que visa travar a expansão chinesa, não apenas como gigante económico que já é, mas também militar e de influência regional e global.
Ora, Washington e os estrategas do Pantagono sabem que os EUA ainda são a potência militar hegemónica global, e economicamente ainda estão no topo, apesar da proximidade chinesa, e podem crer que numa hipotética guerra com a China, se se chegar a essa situação dramática, sairão vitoriosos.
Mas sabem igualmente que o mesmo cenário não se aplica contemplando a parceria estratégica actual entre russos e chineses, que o ministro dos Negócios Estrangeiros de Pequim, Wang Yi já avisou que é "sólida como uma rocha" e inquebrantável.
É que a união da gigantesca capacidade industrial chinesa, a sua mão-de-obra militar e produtiva, com os recursos infindáveis da Rússia, energéticos, minerais, alimentares e a sua já provada grande capacidade tecnológica militar... são um adversário que os americanos, mesmo com o apoio dos aliados da NATO, não poderão superar.
O que leva cada vez mais analistas a colocarem como objectivo de Donald Trump e a sua equipa mais próxima procurar convencer Moscovo a desligar-se de Pequim por troco de uma saída vitoriosa na Ucrânia, de forma a fragilizar a China.
O que permite antecipar uma crise entre americanos e russos no dia em que Trump perceber que a parceria entre Moscovo e Pequim é mesmo "sólida como uma rocha".
E permite ainda admitir que, provavelmente, é por esse momento que Europeus e Zelensky aguardam enquanto resistem à pressão americana para cederem às exigências do Kremlin.
A guerra na Ucrânia pode ainda estar longe de terminar.