Não é certo sequer que a guerra seja o ponto central deste reencontro histórico entre os EUA e a Federação Russa após mais de três anos de costas voltadas por causa da aposta de Washington em desferir um golpe de misericórdia em Moscovo usando Kiev como ariete.
Para já, parece sim que os aliados europeus dos EUA não foram chamados para contribuir com quaisquer ideias para desenhar esta nova etapa das relações entre as duas grandes potências militares planetárias, mas pode mesmo acontecer que nem sequer fizesse sentido.
É que nem americanos nem russos parecem saber por onde começar a falar, o que resolveram ao passar para os media a ideia de que tudo vai começar como se este fosse o ponto inicial das relações entre EUA e Federação Russa, como uma "folha em branco".
O que fará pouco sentido porque tanto Washington como Moscovo têm quilómetros de informação acumulada sobre o outro ao longo de quase meio século de guerra fria, até 1990, e depois, após a queda da URSS, quando a desconfiança foi o "prato" mais servido sempre que russos e americanos se sentaram à mesa.
Os pesos-pesados da Administração Trump já estão na capital saudita, Riade. São eles Marco Rubio, o chefe da diplomacia, Mike Waltz, o conselheiro para a Segurança Nacional do Presidente, e Steve Witkoff, o enviado especial da Casa Branca para o Médio Oriente.
E o Kremlin mandou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, o conselheiro principal diplomático de Vladimir Putin, Yury Ushakov, e Kirill Dmitriev, que chefia o fundo russo de Investimento Directo.
O que se pretende?
A missão das duas comitivas não podia ser mais simples... criar condições para quando Putin e Trump chegarem a Riade, o que se prevê que ocorra antes do fim do mês, possam sorrir, confraternizar e assinar a papelada que vai moldar o mundo nas próximas décadas...
É que se alguma coisa os dois lados deixaram escapar foi que Washington e Moscovo não iam jogar a cartada do reatar das relações bilaterais, quase feridas de morte pelos estilhaços da guerra na Ucrânia, apenas para lidar com o tópico da paz no leste europeu.
Outra coisa é que a guerra na Ucrânia vai seguramente ficar resolvida no encontro Trump-Putin de Riade porque sem esse passo dificilmente outros se poderão seguir, porque em diplomacia é fundamental tirar peso morto da mochila para se poder caminhar melhor e mais depressa.
Perante a evolução deste processo de negociações entre americanos e russos, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky já veio dizer que não vai reconhecer quaisquer resultados que digam respeito à Ucrânia e que, nessa perspectiva, são conversações "sem significado".
"A Ucrânia não participa neste encontro e nada sabe sobre este encontro e nada do que for dito tem importância sem a presença de Kiev", apontou ainda Zelensky em declarações aos jornalistas durante uma visita ao Médio Oriente sem ligação às negociações entre russos e americanos em Riade.
Mas esta situação não é uma surpresa porque o Kremoin, através de Yury Ushakov já tinha informado que não haveria terceiros envolvidos no diálogo com os americanos, embora tenha afirmado igualmente que nestas conversações será procurada uma solução para a guerra.
Todavia, o conselheiro principal de Putin para os assuntos diplomáticos também notou, já em Riade, que o principal deste encontro é desenhar a retoma sólida das relações entre a Rússia e os EUA.
E assim entra em cena a questão da secundarização dos aliados europeus dos americanos e a própria Ucrânia, a quem nem o Kremlin nem a Casa Branca convidaram para a mesa dos "grandes".
Os russos porque não confiam nos europeus depois da "traição" dos Acordos de Minsk I e II (2014 e 2015), que franceses e alemães usaram, como admitiram depois os antigos lideres Angela Merkel e François Hollande, para ganhar tempo e poderem armar Kiev nas costas de Moscovo.
O Kremlin também não quer, para já, os ucranianos sentados à mesa porque não reconhecem legitimidade ao Presidente Volodymyr Zelensky, que devia ter realizado eleições em Maio de 2024 para se relegitimar e não o fez usando para isso a Lei Marcial que o país vive há três anos.
E os americanos abdicam da presença dos seus aliados da Europa Ocidental porque a sua prioridade geoestratégica já não é o "velho continente" mas sim o "novo polo mundial" que é o Indo-Pacífico e a crescente influência chinesa que buscam forma de conter a todo o custo.
E a China...
Ora, é aqui que o nó fica mais difícil de desatar, porque se percebe com rara nitidez que em Washington a aposta de todas as fichas vai para separar a Rússia da China como forma de fragilizar um e outro, dando mais tracção à hegemonia norte-americana, tanto económica como militar.
Como alguns analistas sublinham, Donald Trump está apostado em resolver o erro estratégico do seu antecessor, Joe Biden, que foi deixar que Moscovo e Pequim erguessem uma parceria estratégica que o ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, definiu como "mais forte que uma rocha".
E isso porque é já evidente em Washington, tanto do ponto de vista militar como económico, que os EUA podem ombrear e ter vantagens sobre a China mas dificilmente conseguem igualar o poder que resulta da junção da capacidade industrial de Pequim aos recursos naturais infindáveis e à surpreendente tecnologia militar russa.
Para isso, a Administração Trump estará, como vários analistas admitem, entre os quais John Mearsheimer, especialista norte-americano em relações internacionais, autor e professor da Universidade de Chicago, disponível para sacrificar a Europa Ocidental disponível para sacrificar os aliados europeus no altar dos seus interesses estratégicos.
Usando, no caso ucraniano, o trunfo da insustentável autonomia europeia no âmbito do apoio a Kiev para manter o esforço de guerra com os russos, sabendo por isso que retirar o suporte norte-americano é equivalente a uma condenação de Kiev à total derrota.
E com uma derrota ucraniana, que é já evidente no campo de batalha, a Europa Ocidental corre o risco de se desmantelar como um bloco coeso, seja no que diz respeito à NATO, que deixaria de ter qualquer significado sem Washington, e mesmo na União Europeia, com os Estados-membros a não terem alternativa à procura de soluções fora do quadro comunitário.
Naturalmente que se a conversa evoluir a questão da paz na Ucrânia não será irrelevante, até porque Moscovo sabe que são os americanos que mais facilmente retiram o chão à ideia europeia e ucraniana de enviarem forças militares ocidentais para o terreno (ver links em baixo) de formsa a garantir a robustez de um eventual acordo que leve ao fim das hostilidades.
O problema é que Donald Trump e os seus enviados a Riade, correm o sério risco de Moscovo não deixar que estas negociações ponham em causa a sua parceria estratégica "forte como uma rocha" com a China, assente ainda na construção do bloco planetário que são os BRICS.
É certo que americanos e russos têm muito mais temas para discutir, desde logo um acordo de segurança global que abrange a Europa e a Eurásia, com limitações ao crescimento dos arsenais nucleares, muitas delas, existentes em acordos anteriores, foram anuladas na anterior passagem de Donald Trump pela Casa Branca.
Porém, esses acordos, incluindo as questões energéticas, podem parecer muito pouco aos olhos de Washington se estas conversações de Riade, históricas nos seus termos, não evoluírem para a desvitalização dos laços que unem russos e chineses.
Em última instância, pouco provável, é certo, o reatar das relações entre russos e americanos ao fim de quase três anos, o tempo que dura a guerra na Ucrânia, já a 24 de Fevereiro, podem não passar das conversas entre as equipas avançadas lideradas por Marco Rubio e Sergei Lavrov na capital da Arábia Saudita, decidindo Trump e Putin a ficar em... casa.
Entretanto, a partir do Kremlin...
... ao mesmo tempo que em Riade decorrem as conversas entre americanos e russos, em Moscovo o porta voz do Kremlin, Dmitri Peskov admitia que Putin pode vir a conversar com Zelensky "se necessário".
No entanto, Peskov volta a questionar a legitimidade do Presidente ucraniano, porque quaisquer compromissos estariam em causa devido à falta de legitimidade democrática de Volodymyr Zelensky por não ter realizado eleições no devido tempo, em Maio de 2024.
O porta-voz de Putin esclareceu ainda, numa declaração com um grau elevado de surpresa, que Moscovo não vai interferir na adesão ucraniana à União Europeia, traçando apenas uma linha vermelha no que toca a alianças militares e de segurança, de onde sobressai a NATO, para onde Kiev tem, de acordo com os russos, de desistir para sempre de tentar entrar.