Com o grosso das forças de elite das Forças Armadas guineenses consigo, e com muitos dos restantes oficiais a mostrar apoio ao golpe, o tenente-coronel Mamadi Doumbouya (na foto) passou à segunda fase da tomada do poder com a colocação de unidades militares ao longo das fronteiras terrestres com os países vizinhos, que são o Senegal, a Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Serra Leoa, Libéria e o Mali, de forma a impedir qualquer tentativa de socorro ao Presidente Condé.
Mamadi Doumbouya optou ainda por substituir todos os governadores regionais por oficiais das Forças Armadas leais ao golpe, isto, depois de o Governo ter sido extinto e o Parlamento dissolvido, estando, como é comum nestes repetidos episódios em África, a usar a televisão e arádio públicas para comunicar com o país e com o mundo através de comunicados onde prometem restaurar a democracia logo que possível anunciando que enquanto militares não têm como objectivo manter o poder político.
E foi num desses comunicados que o oficial que lidera esta intentona disse que o derrube do Presidente Alpha Condé foi um imperativo de consciência por causa da deriva autoritária que estava em curso na Guiné-Conacri (República da Guiné), sublinhando que "o dever de um soldado e salvar o seu país" prometendo devolver o poder aos pouco mais de 12,5 milhões de habitantes e não a um homem.
Enquanto o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, a União Africana, a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), a União Europeia, os EUA, a França... com ameaça de sanções aos autores da intentona, condenaram de forma inequívoca o golpe, o tenente-coronel Mamadi Doumbouya e os seus homens apostavam em salientar a situação económica e social na Guiné-Conacri, onde o desemprego, a deterioração das infra-estruturas, a corrupção, fizeram de um país rico, independente desde 1958, um dos Estados mais pobres do continente africano.
União Africana em peso contra golpistas
Já no final do dia do golpe, Domingo, 05, o presidente da União Africana (UA), o congolês Félix Tshisekedi, e o presidente da Comissão Africana, Moussa Faki Mahamat, emitiram uma declaração onde não só condenam o golpe como exigem a libertação imediata do Presidente Alpha Condé, deixando claro que nenhuma tomada de poder pela força será aceite pela organização pan-africana.
Neste comunicado, os dois lideres africanos anunciam ainda a realização de um encontro extraordinário do Conselho de Paz e Segurança da UA para examinar, em ponto único, a situação em Conacri e avançar com medidas apropriadas.
Recorde-se que a carta da União Africana sobre Democracia, no seu Capítulo VIII, dedicado às tentativas de mudança de Governo anticonstitucionais, é clara ao garantir que qualquer tentativa, seja através de golpe militar ou outro, não será tolerada ou aceite pela UA e que esta será célere na aplicação das sanções consideradas apropriadas.
No entanto, o mesmo documento faz um forte sublinhado à intolerância para com as alterações à Constituição que visem a manutenção do poder e sejam uma violação "aos princípios da alternância democrática", o que foi o caso das alterações inseridas na Constituição por Alpha Condé, em 2020, de forma a garantir o seu 3º mandato.
Condé, o democrata que resvalou para o autoritarismo
Depois de décadas de Governos autoritários, Alpha Condé ganhou as eleições em 2010, as primeiras incontestavelmente democráticas, com um discurso assente na urgência da democratização do país, condenando as ditaduras do passado e prometendo devolver a capacidade de decisão ao povo.
Manteve essa postura até ao meio do seu segundo mandato, momento a partir de onde, de forma evidente, apostou numa deriva para o passado e com a clara intenção de anular as restrições constitucionais a um terceiro mandato, o que acabou por conseguir, fazendo-se eleger através de uma forte suspeita de massiva fraude nas eleições de 18 de Outubro de 2020, tomando o poder em Novembro desse mesmo ano.
Este golpe não apanhou de surpresa os mais atentos, como se pode observar pelo que dizem os analistas convidados a comentá-lo nos media franceses, muito por causa da insatisfação popular, que levou centenas de milhar para as ruas logo após Condé, aos 83 anos, fazendo lembrar o tempo em que, em África, ser Presidente era para toda a vida, ter anunciado a sua recandidatura a um 3º mandato, tendo dezenas morrido nesses protestos, mas também devido à insalubre situação económica e social do país, apesar dos abundantes recursos económicos que ultimamente estavam a ser explorados não por chineses mas também com cada vez maior atenção por parte da Turquia, além da sempre presente França, a antiga potência colonial.
Apesar de não existir uma clara oposição aos golpistas nas ruas de Conacri, os media com jornalistas no terreno têm divulgado a existência de unidades que permanecem leais a Condé no interior das Forças Armadas, como o tiroteio que se ouviu durante a noite na capital o demonstra, o que permite dizer que o golpe ainda não foi concluído com 100% de sucesso.
Outra das grandes questões que fazem com que a República da Guiné seja um potencial barril de pólvora é que o país é, desde a sua independência, governado pela minoria Malinke quando a esmagadora maioria da população é da etnia Fula (Fulani), sendo que o tenente-coronel Mamadi Doumbouya é, também ele, um dos membros da elite Malinke.
Mas quem é, de facto, o líder golpista?
Mamadi Doumbouya, com o posto de tenente-coronel mas que os media internacionais, por facilidade de comunicação, "promoveram" a coronel, tem um longo historial fora do país onde agora tende a ser o rosto do novo poder.
Foi membro do corpo de Legionários das Forças Armadas Francesas até 2018, ano em que regressou a Conacri, a convite de Apha Condé, para liderar uma força especial dentro das Forças Armadas com a missão de combater o terrorismo.
Tem o grosso da sua formação na Escola de Guerra francesa, integrando repetidas missões gaulesas além-fronteiras, nomeadamente, como se pode ler nos perfis divulgados nas últimas horas nos media especializados, no Afeganistão, na Costa do Marfim, durante a presença francesa após os tumultos de 2010, 2011, ou ainda na RCA.
O seu passado militar regista ainda formação em unidades especiais em Israel, Senegal e no Reino Unido, países onde frequentou as escolas de elite das respectivas Forças Armadas.
Mamadi Doumbouya deixou uma carreira de sucesso nas Forças Armadas francesas para ingressar nas Forças Armadas da República da Guiné por convite do Presidente Alpha Condé, em 2018, para liderar uma unidade de topo entre as forças especiais, com poder sem igual, sendo mesmo o seu grupo considerado um Exército dentro do Exército, cuja missão mais saliente seria o combate ao terrorismo mas que algumas fontes citadas pelos media especializados apontam como sendo, efectivamente, uma criação de Condé para garantir a sua segurança face à crescente contestação interna que o Presidente vinha granjeando.
No entanto, algumas fontes admitem que a motivação do tenente-coronel Mamadi Doumbouya para este golpe pode não ser, efectivamente, a deriva totalitária de Condé mas sim o facto deste o ter transferido para um distante e subalterno posto na fronteira da Serra Leoa, numa cidade chamada Forecariat.
A sua reacção terá gerado uma situação incandescente no seio das Forças Armadas guineenses e chegou mesmo a haver rumores de que fora preso ou que tinha sido dada ordem para a sua detenção.
O que se pode confirmar de facto é que, aproveitando a tensão social no país, gerada pela degradação da sua situação económica, com um desemprego galopante, um custo de vida insuportável para as classes menos favorecidas, o descontentamento com a alteração à Constituição de forma a perpetuar-se no poder por parte de Alpha Condé - que terminou a sua carreira política exposta num vídeo humilhante rodeado de miliares golpistas, camisa aberta, desfraldado e sentado num sofá -, o tenente-coronel Mamadi Doumbouya aproveitou para resolver dois problemas com uma só decisão: tomar o poder, através de um golpe militar... em nome do povo.