O racismo, incluindo a subcategoria colorismo (com ênfase em países como Angola ou Moçambique), tem no espaço da CPLP um tronco comum: a escravatura e o colonialismo portugueses que, durante séculos, humilharam, exploraram e mataram milhões de negros, em nome de uma pseudo-supremacia branca e de um capitalismo assente na subjugação do outro e exploração de mão-de-obra escrava.

Sendo o racismo um mortífero e hediondo crime contra a Humanidade, que dizima mulheres e homens em países como Brasil ou Portugal e que condiciona o desenvolvimento humano em vários estados, torna-se incompreensível que, 27 anos depois da sua criação, a CPLP continue a assobiar para o lado perante um dos principais obstáculos à igualdade político-social.

Dessa forma, a organização faz letra morta aos objectivos plasmados na sua Declaração Constitutiva, nomeadamente o de "promover medidas, particularmente no domínio pedagógico e judicial, visando a total erradicação do racismo, da discriminação racial e da xenofobia".

Também ignora que, de acordo com os seus Estatutos, a CPLP é regida por princípios que incluem o "primado dos Direitos Humanos e da Justiça Social", com o objectivo de promover as práticas democráticas, a boa governação e o respeito pelos Direitos Humanos".

Neste contexto, torna-se, de facto, inconcebível que o racismo, uma das mais gritantes violações da dignidade humana e dos direitos humanos, passe ao lado dos incontáveis encontros que a CPLP realiza mês sim, mês também, em diferentes países com a adopção de documentos finais escritos em cplpês, muitas vezes sem tradução no quotidiano do cidadão comum.

Ao recusar ou evitar discutir o racismo, a xenofobia e outras formas de discriminação racial à porta aberta, em conferência, congresso ou reuniões similares, envolvendo os visados, a CPLP transforma-se num lugar onde se abordam lateralidades e se ignora o central, o que é comum e tem a mesma raiz.

Ciente da dimensão do problema, Lula da Silva, para a recente visita a Portugal, incluiu, na sua delegação, três ministros preparados para discutir com as autoridades lusas a discriminação racial e xenofobia contra imigrantes brasileiros que escolheram Portugal para estudar, trabalhar e viver.

No entanto, os ministros brasileiros dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida, da Igualdade Racial, Anielle Franco e da Secretaria Geral da Presidência, Márcio Macedo, não se ficaram pela discriminação contra os seus compatriotas, ouviram também africanos e negros portugueses para uma percepção abrangente do fenómeno em Portugal e cobrar das autoridades lusas medidas concretas contra a discriminação racial.

E os efeitos dessa cobrança não tardaram a aparecer.

Pela voz do seu Presidente, Portugal manifestou-se disponível a assumir as suas responsabilidades sobre o que fez de "mau" durante a colonização. "Seria possível, a propósito de toda a colonização e toda a descolonização, assumirmos plenamente a responsabilidade por aquilo que fizemos", disse Marcelo

Rebelo de Sousa, no Parlamento, no dia da Revolução dos Cravos, último dia da visita de Lula da Silva a Portugal.

Sem pedir desculpas de facto, todavia, reconheceu, numa declaração ambígua, que o seu País deve um pedido de desculpas pela colonização. "Não é apenas pedir desculpa - devida, sem dúvida - por aquilo que fizemos, é o assumir a responsabilidade para o futuro daquilo que de bom e de mau fizemos no passado".

O "mau", asseverou, são: "a exploração dos povos originários, a escravatura, o sacrifício do interesse do Brasil e dos brasileiros".

Esta espécie de ensaio para um claro e global pedido de desculpas teve o primeiro episódio em 2022, em Maputo, quando o primeiro-ministro português, num tímido pedido de desculpas, considerou o massacre de Wiriyamu (Tete) um "acto indesculpável que desonra" a História de Portugal, ignorando todos os outros massacres praticados pelas autoridades portuguesas como os de Mueda, Inhaminga, Pindjiguiti, Baixa do Cassanje ou Camabatela.

O actual reconhecimento de Rebelo de Sousa contrasta com a sua posição de 2017, em Gorée (Senegal), entreposto nas rotas atlânticas do tráfico de escravos, quando se recusou a pedir perdão pelo papel de Portugal na escravatura, escudando-se no pioneirismo de Lisboa ao admitir em "1761 a injustiça da escravatura", em "reconhecimento pela dignidade do homem".

Hoje "assumir a responsabilidade para o futuro" passa por abandonar a ambiguidade e reconhecer que o racismo estrutural e a xenofobia na sociedade portuguesa têm raiz nesse secular passado "mau" de Portugal.

"Assumir a responsabilidade para o futuro" é, igualmente, reconhecer que esse passado "mau" transformou o Portugal pós-colonial numa sociedade estrutural e visivelmente racista, onde os negros são silenciados e invisibilizados pelos sistemas e instrumentos de poder, nomeadamente órgãos de tomada de decisão política e a comunicação social.

É denunciar a exclusão de mulheres e homens negros do comentário político sobre questões nacionais, europeias e internacionais, feita pelas televisões, incluindo pelos canais públicos. Em Portugal, entre as várias dezenas de comentadores e analistas políticos, homens e mulheres com idades entre os 20 e os 80 anos, não há racializados.

Assumir essa responsabilidade para o futuro é, igualmente, afrontar os poderes públicos que, na campanha para as últimas eleições legislativas, assistiram silenciosamente, como noutros momentos, a ausência de negros nos debates sobre os frente-a-frente entre candidatos de diferentes partidos concorrentes.

Numa campanha decorrida essencialmente na TV, por causa da pandemia da Covid-19, desses debates, mais de 30, com comentadores que avaliavam a prestação e mensagem do político, tentando influenciar o telespectador/eleitor sobre a importância ou "desimportância" de determinado candidato/formação e suas propostas, os racializados foram excluídos.

"Assumir a responsabilidade para o futuro" passa também por defender a representatividade da diversidade nos diferentes sectores da sociedade portuguesa e manifestar-se contra o comportamento segregacionista dos media que confinam os negros aos debates sobre racismo ou futebol, como se de incapazes ou limitados se tratassem.

É também olhar para medidas reparadoras, nomeadamente as quotas já adoptadas pelo Brasil, como forma de reparar as injustiças e visando a total erradicação do racismo, da discriminação racial e da xenofobia", de acordo com a CPLP.

"Assumir a responsabilidade para o futuro" é indignar-se com a falta de representatividade de racializados em lugares de poder fora do País, como embaixadas e, também, contribuir para que estes ocupem lugares cimeiros em órgãos de direcção dos partidos políticos.

Porque, estando arredados desses lugares, os racializados estão privados do marketing político de que beneficiam as figuras de proa dessas instituições, numa chocante forma de desigualdade de oportunidades.

"Assumir a responsabilidade para o futuro" é, sobretudo, assumir e responsabilizar-se pelo passado, pedindo desculpas públicas e claras pela colonização e escravatura como crimes contra a Humanidade e combater a normalização do discurso de ódio da extrema-direita.

É ainda reconhecer o racismo e a xenofobia no espaço da CPLP como pesada herança desse passado colonial repleto de barbaridades e atrocidades e juntar-se às vozes que no Atlântico e no Índico reivindicam por reparação e uma diferente abordagem do tema que passa pela alteração da historiografia portuguesa.

É, igualmente, juntar-se ao Brasil de Lula da Silva, que, pelo seu peso, poder e posicionamento programático, está em condições privilegiadas para colocar a questão do racismo no centro da agenda da CPLP e, com isto, aproximar a organização à sociedade civil e aos povos desse espaço.

"Assumir a responsabilidade para o futuro" é também homenagear as vítimas do racismo com, por exemplo, a criação de um prémio de direitos humanos contra o racismo na CPLP Alcindo Monteiro/Marielle Franco, duas das vítimas assassinadas por racistas em Portugal e no Brasil.

E seria trabalhar para a aproximação entre descendentes do "açoitado e do açoitador", na expressão de Chico Buarque, construindo uma verdadeira comunidade expurgada do "mau" do passado que ainda se faz presente.