No primeiro minuto da conversa, quando João Lourenço olhar para Xi Jinping, saberá de imediato se aquele será um encontro entre dois velhos amigos ou um encontro entre duas pessoas pragmáticas que dirigem dois países importantes no xadrez geopolítico global cujos interesses comuns são o azimute.
Antes do último aperto de mão, que deverá ocorrer duas horas depois do início deste encontro que é histórico, não porque seja o primeiro, mas porque pode ser o último, se correr mal, Lourenço e Jinping já terão o futuro das relações bilaterais escrito nas linhas do futuro.
E a matéria-prima com que terão de lidar, com a realpolitik, que é como quem diz, com o pragmatismo acima dos humores, como base de sustentação, é simples, é conhecida e tem registo histórico sólido: O que liga Luanda a Pequim é mais que o que separa as duas capitais.
Quando, inesperadamente, pelo menos já com indícios para explorar a possibilidade fora dos corredores dos segredos diplomáticos mais sensíveis, João Lourenço encetou um processo de aproximação ao ocidente (ver links em baixo nesta página), mudando, assumida e conscientemente, a agulha das prioridades político-diplomáticas, em Pequim soaram alarmes.
E quando a Cimeira EUA-África, que teve lugar em Dezembro de 2022, já a opção estratégica de Angola de apostar numa aproximação ao ocidente emergia em conjunto com um cuidado, mas evidente, e inevitável, afastar das velhas e históricas ligações preferenciais à China e à Rússia...
O "grand jeu"
Este era e é o jogo mais complexo do xadrez diplomático global nestes anos de Presidência de João Lourenço e que, sem margem para dúvida, vai moldar o futuro de Angola no mapa-mundo da política, da economia e dos interesses em que todos se juntam sem se misturarem.
Até porque, se é verdade que, com a aproximação aos Estados Unidos, marcada indelevelmente com as visitas do Presidente a Washington, onde foi recebido na Casa Branca pelo homólogo norte-americano, e com a passagem por Luanda das figuras de proa da Administração Biden, como Antony Blinken, chegaram os recados de Pequim a Luanda.
É um facto que, no universo diplomático, no "grand jeu" sobre o mapa dos interesses, é comum comunicar incómodos através de decisões com peso simbólico, seja usando os media para antecipar cenários, seja, por exemplo, deixar pendurada a nomeação do embaixador. Aconteceu ambos.
O embaixador da China actual, Zhang Bin, apenas apresentou cartas ao Presidente da República em finais do mês passado, ao fim de largos meses de um pesado lugar vazio, depois de Gong Tao ter deixado o país em meados do ano passado já com o lubrificante a faltar no motor da diplomacia bilateral.
E em Setembro desse ano, o jornal chines editado em Hong Kong por uma empresa privada, sendo mesmo problemática a sua distribuição no continente, mas com tradição de ser usado pelo Governo de Pequim para passar recados, divulgava a substantiva subida dos pagamentos de Angola à China com o fim da moratória desenhada em contexto de pandemia da Covid-19.
Claramente, as relações com a China não estavam no seu melhor momento, depois de, como o jornal notava, duas décadas de intrincada cooperação, a ponto de ter mesmo somado mais de 42 mil milhões USD em empréstimos para financiar a reconstrução do país no pós-guerra.
Actualmente, essa dívida está ligeiramente abaixo de metade, cerca de 21 mil milhões USD, segundo diversas fontes, podendo este número estar ligeiramente inflacionado devido ao esforço feito nos últimos tempos por Luanda para baixar o compromisso com Pequim.
Todavia, essa dívida à China é a mais volumosa de todos os compromissos assumidos internacionalmente por Angola, e também a que mais pesa, sendo uma das causas das dificuldades sentidas na economia nacional, e sobre a qual um alívio acentuado era muito bem vindo sobre os perto de 7 mil milhões USD pagos obrigatoriamente todos os anos em juros.
Mas João Lourenço pretende mais que isso, pretende trazer de Pequim créditos volumosos para concluir alguns dos seus mais emblemáticos projectos, como a refinaria do Lobito, e, essencialmente, mais investimento externo para os sectores premium da economia angolana.
Isso mesmo vem na nota com o enquadramento desta visita de João Lourenço à China de sexta-feira a Domingo próximos, com a atenção do Presidente da República nas áreas têxtil, da farmacêutica e do universo agrícola, na província de Xandong.
E com o Chefe de Estado vão os ministros da Energia e Águas, Transportes, Agricultura, Finanças e Recursos Minerais, Petróleo e Gás, o que deixa perceber as áreas de foco principal nesta visita de alto nível.
Polir arestas e... as palavras que contam
Apesar deste esforço de ambos os países em limar arestas e tirar algumas pedras do caminho, com Pequim e Luanda marcadas pelos interesses comuns e as dependências geradas nas últimas duas décadas, na Cidade Alta pode ter acontecido uma reanálise das prioridades e compromissos internacionais.
Isto, porque, numa realidade em que não vale a pena esconder o corpo tapando a cara com as mãos porque tudo é analisado finamente e de todos os ângulos possíveis, como são as relações internacionais, Angola está dentro do "campo de batalha" que o Ocidente Alargado, liderado pelos EUA, e o eixo Pequim-Moscovo, em luta férrea por uma nova ordem mundial.
Como a actual ordem mundial baseada nas regras impostas pelo ocidente no pós-II Guerra Mundial, que é contestada pelo Sul Global, onde se destacam neste ponto específico a China e a Rússia, mas também outros gigantes como a Índia e o Brasil ou a Indonésia, numa "batalha" onde África assume uma importância gigantesca.
A importância de África resulta da dos mais de 50 países que perfazem a geografia do continente, mas essencialmente dos seus imensos e insubstituíveis recursos naturais, dos quais dependem muitas das novas indústrias 2.0, desde logo os velhos ouro, cobre e petróleo ou diamantes, mas cada vez mais relevantes os novos coltão, cobalto, e as "terras raras" que abundam por cá e faltam em quase todo o lado.
E Angola, pela sua posição geográfica, por ser na África Austral um dos dois gigantes - a África do Sul, enquanto membro dos BRICS, já fez as suas escolhas neste xadrez mundial -, que ainda estão em disputa para integrar um dos campos de geoeconomia e geopolítica globais, joga a sua cartada que é agora mais clara.
Luanda não quer, como, alias, João Lourenço foi dizendo, mesmo que essas suas palavras tenham reverberado menos que as que escolheu para dizer que a viragem para ocidente (EUA) era consciente e sólida, deixar de manter saudáveis relações com a China - com a Rússia é tudo ainda muito nebuloso.
Isto, porque parece que João Lourenço percebeu e decidiu que ser a dama mais desejada pelos dois polos de dimensão planetária, como o é, de resto, o continente africano, é a posição mais vantajosa no especioso jogo da realpolitik.
E é esta posição, mesmo que obrigatoriamente gerida com sensibilidade extrema, que mais serve os interesses de Angola, até porque, como as sondagens mostram sem o mais certo, em Novembro é provável que o ex-Presidente dos EUA, Donald Trump, regresse à Casa Branca.
E o desprezo que Trump tem para com o resto do mundo, especialmente por África, como o seu mandato, entre 2016 e 2020, o mostrou sem margem para dúvidas, deverá obrigar a que os projectos de aproximação lançados pela Administração Biden em África voltem para o baú das recordações.
João Lourenço, claramente sabedor das areias movediças que são a diplomacia e as relações internacionais, com esta visita plena de significado e interesses, recíprocos, à China, está também a dizer, como o fazem Washington e Pequim e Moscovo e Londres, Paris ou Lisboa ou Abuja, Pretória ou Brasília... que na Cidade Alta são os interesses nacionais que mais ordenam.
E deixará isso bem claro quando se encontrar na sexta-feira com Xi JInping, mas também depois, nas reuniões marcadas com o primeiro-ministro chinês, Li Qiang, e com o Presidente da Assembleia Nacional Popular, Zhao Leji.
A declaração conjunta, que é, como sempre, a sumula dos vários contactos entre as duas comitivas, homens de negócios e políticos, deverá mostrar, mesmo que exija apurada hermenêutica, perceber a qualidade do equilíbrio e balanço de futuro conseguidos pelo Presidente angolano e os seus estrategas e conselheiros entre Luanda e Pequim.