Qual é o balanço que faz destes dois anos do conflito Rússia-Ucrânia?
O balanço dos dois anos de conflito em curso no Leste europeu, que opõe de forma directa russos e ucranianos, requere uma análise sistémica, tendo em conta tanto o carácter complexo do conflito como as dinâmicas que lhe estão subjacentes, nomeadamente, quanto aos objectivos dos beligerantes, grau de empenhamento e interesses dos intervenientes, formas da aço estratégica de ambas as partes e, ainda, considerando os efeitos emergentes do conflito que começam a ser perceptíveis no final deste período.
Como aspectos inequívocos a considerar, destacam-se a intensidade crescente do conflito, o alargamento do espaço geográfico em que se desenrola e a alteração dos objectivos dos beligerantes. Estes assumiram uma dimensão existencial, alterando a própria natureza do conflito que há dois anos apresentava um carácter de conflito limitado, para a parte russa.
Passou, progressivamente, a ser um conflito com o ocidente alargado liderado pelos EUA e por uma constelação de países aliados enquadrados no plano estratégico pela NATO.
Em 22 de Fevereiro de 2022, o objectivo da Federação Russa era impor à Ucrânia o reconhecimento do status quo resultante da anexação da Crimeia e da independência dos dois oblasts do Donbass (Donetsk e Lugansk). O da Ucrânia era a recuperação dos territórios ocupados no sentido de repor a sua soberania nas fronteiras reconhecidas em 1991.
Dois anos de conflito conduziram a uma situação substancialmente diferente. Ambas as partes passaram a ter como objectivo a aniquilação do adversário. Para o efeito a narrativa russa aponta para o que designa de desnazificação da Ucrânia que, no essencial, consiste na deposição do regime saído do levantamento da Praça Maidan e a sua substituição por uma Ucrânia neutral e, em certa medida, controlada pela Federação Russa.
Por seu turno, a Ucrânia avocou a si o objectivo que ao longo deste dois anos foi o mantra do ocidente - "impor uma derrota estratégica à Rússia". No essencial, implicaria uma mudança de regime, a instalação no Kremlin de um Yeltsin 2.º disposto a entregar Vladimir Putin ao TPI, permitir ao ocidente o acesso aos recursos naturais do país e esquecer qualquer pretensão ao estatuto de potência. Eventualmente, levando mesmo à desagregação do país, segundo as fórmulas debatidas no Forum of Free Peoples of Russia, da Free Russia Foundation, ou da Helsinki Commission, cujos propósitos apontam nesse sentido.
A mudança nos objectivos ficou patente após as goradas negociações de paz realizadas em Istambul, em Março de 2022, onde a opção militar, como linha de aço subsidiária ao isolamento político-diplomático e às sanções económicas, aparentava ser favorável à Ucrânia. A ofensiva do Outono desse ano que conduziu à recuperação pelo exército ucraniano de partes significativas dos oblasts de Karkiv e de Kerson acentuou essa convicção. Lembramo-nos do alto comissário para política externa e de segurança comum da União Europeia, Josep Borrell, referir no início que este conflito iria ser decidido no campo de batalha.
Volvidos dois anos, se analisarmos as linhas de aço estratégica do conflito, consta-se que no plano económico a Federação Russa apresenta indicadores de crescimento superiores aos dos países que lhe impuseram sanções. Com o FMI a reportar um crescimento do PIB de 3% em 2023, e uma previsão de 2,6% para 2024, valores superiores a qualquer país do G7, com a Alemanha e o Reino Unido em recessão técnica. O ocidente acaba de impor o 13º pacote de sanções à Rússia, fazendo jus à máxima atribuída a Albert Einstein de que "insanidade é insistir na mesma receita, esperando por resultados diferentes".
No plano político-diplomático, os esforços de isolamento da Rússia também não parecem ter surtido os efeitos desejados pelo ocidente, sendo patente a crescente influência daquele país em organizações como os BRICS e a Organização de Cooperação de Xangai, para além de goradas as tentativas de marginalização da Rússia no G20 e nas Nações Unidas. O aumento da influência russa em África é patente, verificando-se na razão inversa da retracção das potências ocidentais, nomeadamente na região do Sahel, no contexto do que pode ser interpretado como uma reforçada consciencialização destes países em relação aos seus interesses.
No plano militar os factos falam por si. A euforia da contra-ofensiva iniciada a 4 de Junho de 2023, com o objectivo de quebrar a contiguidade territorial entre a Crimeia e o Donbass e retomar a Península, saldou-se por um desastre sem ganhos territoriais significativos e com elevadas perdas em pessoal e material. Só não terão sido maiores, porque o General Zaluzhny, então comandante das Forças Armadas da Ucrânia, terá tido a percepção do erro na concepção da manobra, passando de ataques frontais por forças blindadas para um dispositivo mais disperso, à base de forças ligeiras capazes de explorar o fogo da artilharia, conjugado com a aço de drones tácticos que os militares ucranianos souberam desenvolver com assaz engenho. Zaluzhny parece ter-se dado conta da mudança mais depressa do que os seus mentores em Ramstein.
Em síntese, em termos de balanço destes dois anos de conflito, é possível dizer-se que o ocidente alargado está perante um paradoxo estratégico, naquilo a que os jogadores de xadrez costumam designar por zugzwang, onde qualquer que seja a jogada seguinte a situação acabar por ser pior do que a antecedente.
Em Washington parece já existir a percepção de que o objectivo de impor à Rússia uma derrota estratégica foi mal desenhado. Ao contrário do ocidente, a Rússia transitou para uma economia de guerra, apresenta uma base tecnológica e industrial de defesa com outputs superiores aos do ocidente, uma situação de recrutamento favorável e resultados operacionais em crescendo.
As alternativas para os norte-americanos podem ser desde o abandono da Ucrânia à sua sorte, passando a gestão do conflito à Europa, a manutenção de um apoio limitado para manter as aparências dados os custos de prestígio da opção anterior, ou um empenhamento reforçado com os riscos que daí advêm. O actual impasse, relacionado com as dúvidas sobre a decisão da Câmara dos Representantes dos EUA na afectação de 60 mil milhões de dólares à Ucrânia são um bom indicador deste paradoxo. O ocidente, no tabuleiro de xadrez da Ucrânia, está decididamente em zugzwang.
Nesta altura, já se pode falar de vencedores e de derrotados?
Um conflito ganha-se ou perde-se consoante forem ou não atingidos os respectivos objectivos políticos. Um resultado militar positivo não é, só por si, suficiente para determinar a vitória num conflito. Poderá mesmo ditar circunstâncias determinantes para uma derrota no futuro. O Reino Unido fez parte dos vencedores da Segunda Guerra Mundial, mas o conflito determinou a mudança do ambiente estratégico, da relação dos poderes na ordem internacional, da ascensão dos EUA e da URSS como superpotências e do fim do império britânico. Situação semelhante ocorreu também com a França.
Daí a importância da dedução dos objectivos políticos. No conflito em apreço, este exercício é ainda mais relevante porque envolve uma potência nuclear, a herdeira da URSS, e a Ucrânia que, em boa verdade, avocou a si os objectivos políticos do ocidente alargado, como já foi anteriormente referido.
Neste ponto importa ter presente que os objectivos declarados pela Rússia (desnazificação e desmilitarização, como forma de impor à Ucrânia como um Estado neutral fora da NATO) não representam o seu objectivo final, mas antes objectivos intermédios. O objectivo político da Federação Russa é mais vasto, estando focalizado numa revisão da arquitectura de segurança na Europa, que passe por reverter os avanços que a NATO efectuou para junto das suas fronteiras, a par do reconhecimento do estatuto da Rússia como potência com pretensões legítimas na sua área de interesse estratégico. Os objectivos políticos estão plasmados no documento enviado em Dezembro de 2021 pelo Kremlin a Washington e a NATO, no que constituiu um verdadeiro ultimato, que ao ser desvalorizado pelos dois lados do Atlântico constituiu um catalisador para a intervenção russa em 22 de Fevereiro do ano seguinte.
Da parte da Ucrânia o objectivo político é a mudança de regime na Rússia e a inserção deste país na esfera de influência do ocidente, sendo a recuperação dos territórios ocupados objectivos intermédios.
Da análise do nível de ambição associado aos objectivos políticos e da natureza do conflito, que ao longo destes dois últimos anos tem mantido o carácter de guerra de atrito, pese embora as duas ofensivas ucranianas, não se vislumbra fácil apontar, neste momento, vencedores ou vencidos. É, aliás, muito discutível que alguma das partes possa vir a clamar vitória, porque nem a NATO terminará a curto prazo, nem se vislumbra que esta estratégia delineada para derrotar a Rússia possa ser eficaz.
É, contudo, provável que os efeitos emergentes deste conflito venham a ter impacto na realidade estratégica regional e global, revelando a desadequação dos instrumentos de segurança existentes, nomeadamente perante os novos desafios tecnológicos. É já patente um estado de histeria colectiva relativamente à percepção das fragilidades do ocidente alargado, alarmado com a possibilidade de uma invasão pela Rússia, um país que há dois anos a Presidente da Comissão Europeia dizia ter a economia em cacos.
Para já, não obstante o alarme securitário no ocidente, no plano dos vencedores e vencidos neste conflito poderemos concluir que não haverá vencedores. A Ucrânia está a pagar a factura mais pesada, seja em perdas humanas seja em destruição de património e infra-estruturas, tendo perdido uma geração e contabilizando 13% da população masculina inválida. A Rússia transformada num estado fortaleza com uma economia direccionada para a guerra, desligada do ocidente e virando costas ao continente europeu a que também pertence. O ocidente alargado averba mais um revês, a somar ao Afeganistão, ao Iraque e a tantos outros impulsos estratégicos que se saldaram por perdas de vidas e recursos, mas de onde não parece ter ainda recolhido as devidas ilações.
Este conflito acabou por criar uma nova ordem global e uma corrida por zonas de influência, sobretudo em África. Como é que olha para o alinhamento estratégico dos EUA com países como Angola?
É inegável que a ordem internacional está a transitar em ritmo acelerado para um sistema multipolar e policêntrico, sendo o continente africano um dos pólos desta nova realidade. Concomitantemente, assiste-se a uma tendência para a desglobalização no plano económico, com os Estados preocupados em reverter o processo de desindustrialização resultante da deslocalização da indústria para a Ásia, nomeadamente para a China, agora principal competidor económico dos EUA.
Por outro lado, o Estado parece voltar a assumir um papel de relevo, acompanhado de uma maior valorização do interesse nacional e de uma maior consciencialização das respectivas identidades. No plano multilateral o actual contexto parece mais favorável a fóruns de coordenação do que a associações de integração. Em síntese, a relação entre Estados parece privilegiar mais as acções concretas de colaboração e partilha do que as exegeses de modelos de governação importados de realidades sociais e culturais distintas.
No actual ambiente estratégico parece estarem a desenhar-se dois grandes blocos, o ocidente alargado liderado pelos EUA e um bloco competidor formado em torno dos BRICS. A sua formação obedece às lógicas de confrontação delineadas pelas principais escolas de pensamento geopolítico, sendo válidos os conceitos de Hearthland e ilha mundial apresentados por Halford Mackinder no início do século XX, tendo na contenção do potencial terrestre o principal desígnio.
O novo quadro geopolítico, com um triângulo asiático formado pela Federação Russa, pela China e pelo Irão, representa um desequilíbrio estratégico assinalável, com repercussões efectivas nos pontos de fricção estratégica, nomeadamente na Ucrânia e Médio Oriente.
Os EUA têm claramente definidas na Estratégia de Segurança Nacional as ameaças e os desafios, estando na primeira categoria a Federação Russa e na segunda a República Popular da China. A postura estratégica norte-americana assenta nos patamares da dissuasão e da contenção, empregando para o efeito três modalidades de actuação preventiva, respectivamente, contando com uma rede de Estados alinhados com os interesses regionais dos EUA, recorrendo a proxies e pré-posicionando forças. O primeiro caso é patente no papel do Reino Unido e da Polónia no continente europeu, do Japão no extremo oriente e da Austrália no Indo-Pacífico. No segundo destaca-se o papel da Ucrânia na confrontação com a Rússia. O terceiro é materializado pela malha de bases norte-americanas com dimensão global, sendo a presença de base americanas na Síria e no Iraque, um exemplo da política de contenção do Irão.
Mais propriamente do que resultado de uma estratégia clara em relação a África, a política dos EUA em relação ao continente, a par do posicionamento de forças para o que vulgarmente se designa pela campanha de drones, no âmbito da guerra global contra o terrorismo de matriz jihadista, parece direccionada para a contenção do impulso expansionista da influência chinesa e, mais recentemente, do regresso da Rússia ao continente.
A dimensão do continente africano, os recursos naturais que reúne, o crescimento demográfico, a par do potencial de desenvolvimento humano que reúne, transportam este continente para o centro da agenda internacional. Acresce que na rearticulação da ordem internacional a palavra de África, pelos motivos aduzidos, vai contar mais. Nos BRICS já se posicionam a África do Sul, o Egipto e a Etiópia, com outros países na lista dos candidatos. Numa necessária e inevitável reforma das Nações Unidas, nomeadamente do Conselho de Segurança, o continente africando não poderá deixar de estar presente. Concomitantemente, um conjunto de países africanos tem vindo a afirmar-se no plano internacional, mercê da sua crescente importância quer no plano regional como no quadro multilateral, nomeadamente, a África do Sul, Angola, a Nigéria, a Etiópia, o Egipto, a Argélia, entre outros.
Angola, pela sua dimensão geográfica e populacional, pelos recursos naturais que reúne, pelo fortalecimento das suas instituições, nomeadamente patente na maturidade cívica dos processos políticos, dispondo de uma estrutura económica capacitada e de um sistema de ensino relevante, para além de Forças Armadas poderosas, reúne todas as condições para fazer valer o direito de ser reconhecido como um primus inter pares, tanto no continente africano como, sobretudo, no quadro do Atlântico Sul.
Importa sublinhar que o potencial estratégico de Angola é exponenciado pelo facto de no outro lado do Atlântico Sul estar outro grande país - o Brasil. Um país com quem partilha a mesma língua, laços históricos e culturais ancestrais e uma relação próxima, cimentada por anos de cooperação. Sendo Angola um país da África Austral com uma assinalável frente marítima, a colaboração estratégica com o Brasil representa uma inegável vantagem estratégica.
Estes motivos conferem credibilidade a Angola e, naturalmente, continuarão a despertar o interesse dos EUA, cuja postura continuará a ser de manter com o Estado Angolano relações amistosas, desejavelmente alinhadas com a política externa norte-americana e idealmente procurando aí o balanceamento em relação à outra potência regional integrada no bloco concorrente (os BRICS) - a África do Sul.
As forças de Moscovo acabam de tomar a estratégica cidade de Adviivka, na região de Donetsk, marcando a sua superioridade no terreno e no ar. Esse é um cenário favorável para Vladimir Putin, pelo menos, no plano interno.
A actual conjugação de factores apresenta-se nitidamente favorável à Rússia. Não resulta do acaso, nem de factores exógenos, não sendo despiciendos os apoios recebidos dos seus aliados estratégicos, nomeadamente a China, o Irão e a Coreia do Norte. Resultam, sobretudo, da mobilização dos recursos de um país que historicamente se tem mostrado capaz de, perante situações de aparente inferioridade, mobilizar a sua população e os recursos necessários para produzir uma viragem na situação, prevalecendo sempre sobre os seus adversários. Foi assim com Napoleão, e foi assim com Hitler. Quando a Rússia parecia em colapso emergiu como a Fénix e derrotou os adversários impondo-lhes humilhantes derrotas.
O contexto actual é obviamente mais complexo, embora sem o grau de gravidade e dificuldade comparados com os conflitos anteriores. Acresce que nem os generais ucranianos têm a experiência dos da Grande Armée de Napoleão, ou o da Wehrmacht de Hitler, nem as lideranças ocidentais demonstram a visão política de estadistas como Churchill e Roosevelt.
Acresce que, na dimensão comunicacional do conflito, uma linha de operação estratégica obviamente relevante, porque joga com as percepções, o ocidente tem sido muito eficaz, mas em última análise as guerras ganham-se no campo de batalha e não exclusivamente nos estúdios das televisões ou nas redacções.
Aspectos como a logística de produção, a mobilização das populações, a solidez da base doutrinária e a qualidade dos quadros, dos generais que dirigem as batalhas aos sargentos que conduzem o combate directo, para além da capacidade de inovação tecnológica e da resposta aos desafios nos planos táctico, operacional e estratégico, são elementos decisivos para o sucesso em qualquer conflito.
A coerência do dispositivo, a interoperabilidade dos equipamentos, a formação das forças e a capacidade de rotação e regeneração das unidades de combate são factores decisivos. Neste conjunto de requisitos, a Rússia foi reunindo vantagens, mercê de um esforço organizativo persistente e paciente, contrastando com o carácter errático e circunstancial do apoio à Ucrânia, que não obstante a motivação do seu exército, o engenho dos seus quadros e a tenacidade das suas forças, vê-se condicionada pela diversidade dos meios, por uma cadeia logística longa e complexa, para além de insuficiências no abastecimento de munições e no recrutamento de pessoal, que a colocam em desvantagem.
Acresce ainda que a sistemática interferência do patamar político na condução das operações, patente na irracional defesa de Bakhmut e agora de Adviivka, revelaram-se um desperdício de recursos e uma armadilha de que os militares ucranianos tinham consciência, mas que os políticos desvalorizaram.
Dois anos após o início do conflito a vantagem está do lado dos russos. Vladimir Putin, com eleições dentro de cerca de três semanas, está obviamente numa posição confortável, com os indicadores a conferirem-lhe um nível de popularidade na ordem dos 80%, tendo praticamente garantida a reeleição como presidente da Federação Russa.
O Ocidente será obrigado a forçar Zelensky para o campo das negociações de paz?
É difícil equacionar cenários, até porque os países do ocidente não são unânimes no desenho de uma saída para a situação actual. Os Estados mais fervorosos da opção por uma confrontação militar com a Rússia são precisamente os geograficamente posicionados em maior desvantagem, nomeadamente os países bálticos e a Polónia.
Por outro lado, a húbris dos decisores políticos ocidentais, que impulsionaram a Ucrânia para este conflito como uma via para impor à Rússia uma derrota estratégica, que dissuadiram o presidente da Ucrânia a aceitar o acordo de paz de Istambul, prometendo-lhe um incondicional apoio "as long as it takes". Que apoiaram a fórmula para a paz de Zelensky", que consubstancia a efectiva capitulação da Rússia, que lhe prometeram manter as portas da NATO e abrir um shortcut para entrada na União Europeia, deixando-o efectivamente à porta, têm agora pouco espaço de manobra para o persuadirem a sentar-se à mesa das negociações, com uma Rússia que não aceita outra alternativa que não seja a rendição incondicional da Ucrânia.
Parece estarem a desenhar-se na Ucrânia alternativas políticas para uma mudança interna. Na pior das hipóteses, no cenário menos favorável para a Ucrânia do avanço das tropas russas além do rio Dniepre, chegaremos ao designado Odessa moment, em que o ocidente ou coloca boots on the ground através da NATO e se envolve directamente no conflito, de modo a assegurar a sobrevivência da Ucrânia, ou quem dirige este conflito - Washington, aceita sentar-se à mesa com a Rússia e renegociar um nova arquitectura de segurança na Europa, mudando da actual postura de confrontação para uma de coabitação.
Ucrânia na União Europeia, mas fora da NATO. Esse é um cenário previsível?
A questão central para a Rússia é a neutralidade da Ucrânia, para assegurar que no território deste país não haja nem bases militares nem mísseis dirigidos para Moscovo. Esta é uma questão existencial pela qual estão dispostos a bater-se até ás últimas consequências, como se depreende das palavras de Putin na entrevista ao jornalista norte-americano Tucker Carlson.
No início do conflito, o cenário de uma Ucrânia na União Europeia, mas fora da NATO como no caso da Áustria e até recentemente da Finlândia, parecia plausível. Contudo, a actual interpenetração entre ambas as instituições (NATO/UE) parece tornar esse cenário algo complicado.
A questão que se coloca prende-se com o tipo de Estado que vamos ter no Leste da Europa, no espaço geográfico a que presentemente designamos por Ucrânia, caso este país não consiga o objectivo de recuperar o território ocupado pelo exército russo. Num cenário de perpetuação do conflito, seja numa versão semelhante à das Coreias, seja transitando para uma guerra subversiva, dificilmente a Ucrânia terá condições de estabilidade política, social e económica para poder vir a integrar a União Europeia.
Acresce não serem ainda completamente claros os objectivos de Moscovo em termos territoriais, na certeza de que das declarações de Putin o território da Ucrânia até ao Dniepre é solo russo e Odessa, Mykolaiv e Kherson são território historicamente russo. Segundo as afirmações do presidente russo, a Transcaucásia tem ligações à Hungria, a Dobruja à Roménia e a Galícia à Polónia, numa clara alusão ao facto de que o Kremlin não se oporia à anexação destas regiões por aqueles países.
Os EUA vão para eleições em Novembro próximo e em caso de vitória de Donald Trump, que mudanças teremos neste conflito? É algo que a NATO, a União Europeia e Zelensky temem?
É assente que a reeleição de Donald Trump nas eleições de Novembro próximo está a causar desconforto nas lideranças políticas europeias, atentas ao facto de estarem ainda bem vivas na memória as peripécias do seu primeiro mandato, onde as relações entre ambos os lados do Atlântico não estiveram isentas de picardias.
Acrescer que, na campanha para as primárias do partido Republicano, Trump não se tem poupado a fazer bullying sobre os seus aliados da NATO, tratando-os mais como vassalos do que como pares, numa organização que é suposto reger-se pela regra do consenso.
Trump prima por um estilo cáustico, imprevisível e mesmo grosseiro, adoptando uma linguagem populista que agrada a algumas franjas do eleitorado, saturadas de políticos herméticos e carreiristas, desligados do país real. Trump sabe explorar essa vertente, até porque sendo um homem do show biz, um entertainer, aliás uma característica comum ao presidente da Ucrânia, sabe ajustar as mensagens ao público-alvo.
A Europa, subserviente e mansa, até talvez nem mereça um tratamento diferente, de outra forma questionaria Trump porque é que os EUA contribuem o mesmo que a Alemanha para o orçamento comum da NATO (534 milhões de Euros), quando o PIB norte-americano é mais de sete vezes superior ao daquele país. Perguntaria a Trump se nos critérios dos gastos militares da NATO os EUA também incluem as forças estacionadas na Coreia do Sul, no Médio Oriente, etc. Quem cala consente...!
Têm naturalmente motivos para estar preocupados os dirigentes da União Europeia que Trump desdenhou no seu primeiro consulado, bem como a NATO que Trump votou ao ostracismo. O impacto na Ucrânia é já visível, não devendo ser descartada a influência de Trump na actual situação de paralisia da Câmara dos Representantes, em assuntos vitais como a aprovação do pacote de ajuda à Ucrânia, no montante de 60 mil milhões de dólares.
Como tal, não deve ser interpretado à letra tudo o que Trump diz, percebendo que no caso em apreço o seu objectivo é coagir os europeus a comprar material militar americano, porque o designado Compromisso de Gales estabelece que dos 2% do PIB que os países da NATO se comprometeram a despender no esforço de Defesa, 20% deverão ser direccionados para a aquisição de novas capacidades militares. Em síntese, a preocupação de Trump é garantir bons negócios para o complexo militar industrial norte-americano.
Há, contudo, uma certeza que persiste. Os Estados regem-se por interesses e os interesses permanentes dos EUA não mudam com o inquilino da Casa Branca. O que altera sensivelmente é o estilo e com Trump, pelo menos, sabemos ao que vem.
O Presidente da Ucrânia promete apresentar ao Presidente Putin uma proposta de paz para ser discutida nesta quarta-feira. Quais são as razões deste posicionamento de Zelensky ?
As declarações do Presidente Zelensky, relativamente à "fórmula para a paz", inserem-se nos eventos evocativos dos dois anos de conflito que se realizaram em 24 e 25 de Fevereiro. Fazem parte da estratégia comunicacional da Ucrânia que não sofreu alterações durante todo este período, aparentando, no entanto, estar desfasada da realidade no campo de batalha e mesmo das orientações estratégicas de Washington.
Assenta na narrativa de que, malgrado os maus resultados na frente de batalha, a Ucrânia está a ganhar a guerra e o objectivo político de expulsar os russos para as fronteiras de 1992 está ao alcance de Kiev, desde que o ocidente lhe continue a fornecer o apoio militar e financeiro necessários, "as long as it takes". Em síntese, sem limitações ou condicionamentos, até porque, na perspectiva de Kiev o que está em causa é derrotar a Rússia, impedindo-a de invadir a Europa, e os ucranianos estão a dar a vida pelo ocidente.
Na perspectiva de Zelensky alcançar uma paz justa pressupõe a retirada das forças russas do território da Ucrânia internacionalmente reconhecido; a criação de um tribunal especial para julgar os crimes de guerra cometidos pelos russos; o pagamento de reparações de guerra e a integração da Ucrânia na arquitectura de segurança euro-atlântica (NATO), entre outros. Em síntese, uma situação que consubstancia a capitulação da Federação Russa, o que nas actuais circunstâncias parece ser uma utopia, tanto mais que presentemente a vantagem no plano militar pende para o lado russo.
Estas declarações visam, sobretudo, dar continuidade ao ciclo de cimeiras iniciado em Copenhaga em Junho de 2023, com rondas posteriores em Malta e Davos, tendo por objectivo manter o conflito da Ucrânia na agenda mediática e cooptar apoios internacionais, nomeadamente por parte dos países do designado Sul global, visando em última instância isolar a Rússia.
A conferência de paz agendada para a primavera deste ano na Suíça insere-se nesta estratégia. As expectativas de que possa trazer alguma solução para o conflito não parecem elevadas, de outra forma o Presidente Zelensky não teria já anunciado uma segunda cimeira para o outono, afirmando que a Rússia poderá ser convidada caso aceite submeter-se às condições da fórmula para a paz de Zelensky.
Acresce referir que realizar conferências, cimeiras ou outros eventos para a resolução do conflito ignorando um dos beligerantes, que no caso em apreço é só a maior potência nuclear do mundo, que presentemente tem a máquina militar melhor equipada e mais bem adestrada para a condução de operações de alta intensidade é, no mínimo, insólito.
Se se atender ao diferencial de potencial estratégico entre a Ucrânia e a Federação Russa, às assimetrias nos planos demográfico, económico, territorial e, sobretudo, das respectivas bases tecnológicas e industriais de defesa e de investigação científica, mesmo com o ocidente alargado mobilizado no apoio à Ucrânia, facilmente se depreende que é pouco provável que os objectivos políticos da Ucrânia possam ser alcançados com a actual correlação de forças.
Acha que Vladimir Putin aceitará sentar-se à mesa das negociações? Nesta fase ele leva vantagem militar?
As declarações tanto do Presidente Putin, como do seu Ministro dos Negócios Estrangeiros Sergey Lavrov, têm sido sempre no sentido de que a Federação Russa está disponível para negociar uma solução diplomática para o conflito, salvaguardando as respectivas circunstâncias.
A questão ucraniana apresenta contornos históricos, políticos e sociais que não podem deixar de ser tomados em atenção, nomeadamente o puzzle étnico, cultural e linguístico que fez da Ucrânia um espaço de disputa entre potências ao longo de séculos, acentuando os sentimentos de pertença das suas populações, bem patentes nos antagonismos entre ambas as margens do Dniepre e de outras regiões com afinidades às vizinhas Polónia, Hungria e Roménia.
Ignorar as circunstâncias que conduziram ao actual conflito e as marcas deixadas nas suas populações, nomeadamente nas que se consideram russas, é sinal de autismo histórico e hipocrisia perante o drama de oito anos de uma guerra civil causadora de milhares de mortos e feridos. Insistir na anulação da língua e cultura de uma parte significativa do país é exponenciar as clivagens que alimentam este conflito e criar condições para a transferência forçada de populações e limpezas étnicas, regressando aos espectáculos degradantes do final da segunda guerra mundial e do conflito da ex-Jugoslávia.
A Federação Russa sentar-se-á à mesa das negociações, aliás como o fez em Istambul em 29 de Março de 2022, no início da intervenção militar, e nas cinco rondas de negociações que a antecederam, tendo mesmo assinado o acordo de paz mediado pela Turquia. Segundo referido por Putin, na entrevista ao jornalista norte-americano Tucker Carlson, a Rússia retirou-se então de Kiev como prova do seu empenhamento numa solução negociada. Como é hoje do conhecimento geral foi a Ucrânia que não cumpriu o acordo, na sequência de pressões de Washington e Londres. Desta feita, após dois anos de conflito e milhares de baixas, com os custos económicos e sociais que tanto ucranianos como russos estão a pagar num conflito entre eslavos, a que acresce a consciência de terem sido ludibriados nos Acordos de Minsk, como a própria chanceler alemã Angela Merkel e o Presidente francês Holland reconheceram publicamente, a confiança do Kremlin em relação aos interlocutores ocidentais é certamente diminuta.
Acresce que tanto no plano político-diplomático como no económico e, sobretudo, no domínio das operações militares, os russos estão presentemente em vantagem pressionando os ucranianos em toda a linha da frente. Aparentemente a fase de defesa activa está a surtir efeito, tendo imposto um desgaste decisivo no potencial de combate ucraniano.
Com déficit em material e armamento, míngua em munições de artilharia e, sobretudo, insuficiência de efectivos provocada por baixas colossais, a Ucrânia enfrenta uma situação de insolvência estratégica só resolúvel com uma intervenção directa do exterior. A convocação pelo Presidente Macron da reunião de emergência do dia 27 de Fevereiro, resulta da constatação desta situação e da necessidade de o ocidente alargado encontrar soluções que possam mitigar os riscos.
A acentuar-se esta tendência e com a perspectiva de uma grande ofensiva russa para breve, as possibilidades de uma negociação séria que vise encontrar uma paz honrosa para ambas as partes parecem cada vez mais distantes. Presentemente, o factor tempo joga a favor da Rússia e quanto mais tempo passar maior será a probabilidade de as condições russas para negociação darem lugar a exigências para a capitulação da Ucrânia.
Por outro lado, para além da narrativa dos líderes ucranianos estar desfasada da realidade e do facto de o curso das operações militares lhes ser progressivamente mais desfavorável, a paz parece também não estar nas prioridades de quem efectivamente estabelece as prioridades neste conflito - os EUA. Num ano eleitoral, com a candidatura de Donald Trump a ganhar uma dinâmica de vitória, fazer uma paz com a Rússia que comportasse cedências territoriais seria para a actual administração Biden um sinónimo de derrota.
Este conflito ficará associado à expectativa do ocidente alargado impor uma derrota estratégica à Federação Russa e uma mudança de regime em Moscovo, perspectiva que parece actualmente cada vez mais distante. Assim, até às eleições de Novembro nos EUA, 2024 será um ano de pausa estratégica para a Ucrânia determinada pela míngua dos recursos financeiros, militares e humanos. Tomará a forma de uma guerra assimétrica com "surpresas desagradáveis" para Vladimir Putin, segundo declarações recentes da subsecretária de Estado Vitcoria Nuland. Nas palavras de Nuland a Ucrânia voltará a tomar a iniciativa estratégica em 2025, com vista a criar condições para uma paz vantajosa, na convicção de que derrotar a Rússia estará então ao seu alcance.
A Ucrânia apresentou um número de 31 mil mortos durante os dois anos de conflito. Esta guerra está a ter um peso enorme na estrutura social desse país?
Os números das baixas (mortes, feridos e desaparecidos em combate) são sempre um tema crítico e os respectivos dados tratados com secretismo, tendo em conta o impacto que podem ter no moral dos militares em particular e da população em geral, pelo que o respectivo cálculo se enquadra sempre no campo das estimativas.
O Presidente da Ucrânia, no entanto, surpreende-nos com declarações cuja verosimilhança parece negada pelas evidências. O número que Zelensky apresenta é contrariado não só pelas declarações do anterior comandante-chefe das forças armadas da Ucrânia, General Zaluzhny, como também pelas estimativas norte-americanas e do Ministério da Defesa da Rússia. Segundo declarações recentes de Sergei Shoigu, a Ucrânia terá sofrido até ao presente 444.000 baixas. Contrastam também com imagens que mostram a vastidão dos cemitérios com milhares de bandeiras ucranianas a identificar as campas dos militares caídos em combate.
Por outro lado, o objectivo estabelecido pela Ucrânia de proceder com urgência à mobilização de 500.000 militares para o exército, e a meta de manter um ritmo de mobilização de 30.000 militares por mês, destinados a criar novas unidades de combate e a colmatar as perdas, atesta que também neste domínio a narrativa do presidente da Ucrânia está desfasada dos factos.
Este posicionamento fragiliza Zelensky internamente e a NATO também. Literalmente admitem que não conseguem vencer o exército russo no campo de batalha.
A insistência em narrativas fantasiosas destinadas a influenciar as percepções das opiniões-públicas, constitui a centralidade estratégica da Ucrânia, contando para isso com o apoio do ocidente alargado. A linha comunicacional tem prevalecido, nomeadamente sobre a das operações militares. Só assim se compreende tanto a resistência do Batalhão Azov em Mariupol, para impedir que Putin averbasse uma vitória antes da parada do dia da vitória em Moscovo, como posteriormente a defesa de cidades como Bakhmut e Avdiivka, verdadeiros desastres estratégicos para a Ucrânia que se saldaram em derrotas humilhantes e elevadíssimas perdas humanas.
O conflito tem uma elevada componente de teatralização, como é patente na indumentária de Zelensky e da sua entourage, construindo uma realidade paralela como se este conflito fosse mais uma série da "Guerra dos Tronos". Tem contribuído para um ambiente de alucinação colectiva, patente na falta de percepção dos riscos de confrontação directa com a Federação Russa, que os líderes políticos da União Europeia têm demonstrado, esquecendo-se que a acontecer o campo de batalha será a Europa.
Esta deriva teve recentemente um dos seus expoentes na cimeira de emergência dos líderes da União Europeia convocada pelo presidente francês, a pretexto do fornecimento de munições de artilharia à Ucrânia, acabando por se saber através das declarações do Primeiro Ministro da Eslováquia Robert Fico, que o tema de discussão foi também o eventual envio de tropas para o teatro de operações da Ucrânia.
Esta notícia causou natural alarme nas opiniões-públicas, agora confrontadas com a eventualidade de empenhamento directo aberto na guerra da Ucrânia, irritou Moscovo que brandiu argumentos ameaçadores e conduziu aos normais desmentidos por parte das chancelarias ocidentais. Estão, contudo, na linha dos argumentos que já ouvimos anteriormente quando surgiram os alertas sobre os riscos de escalada associados ao fornecimento dos sistemas HIMARS, carros de combate Leopard, aviões F-16, ATACMS, etc.
Após as reacções iniciais de choque e negação, saldaram-se pela aceitação e concretização, acentuando um percurso de escalada que nos tem colocado sucessivamente mais próximos de uma confrontação directa com a Rússia e do apocalipse nuclear.