A morte de Qassem Soleimani por um míssil disparado por um drone norte-americano em Bagdade, capital do Iraque, foi um momento-chave, e de viragem, na política interna do Irão, que estava em mãos com uma forte contestação de rua contra a política conservadora do regime dos aiatolas, actualmente liderado por Ali Khamenei, apesar de o seu Presidente, Hassan Rouhani, ser considerado um moderado assumido, passando para um cenário de apoio ao regime contra os EUA.
O Irão é governado num sistema político que pode ser considerado uma democracia parcial, porque o seu Presidente é eleito por voto secreto e universal, mas no topo da hierarquia do Estado está um religioso, o aiatola, que não se submete ao escrutínio popular, sendo, no fim de um intrincado processo burocrático, designado por um denominado Conselho dos Guardiões.
Face ao assumir do erro no abate do avião comercial ucraniano, e da morte de mais de 170 pessoas a bordo, na maioria iranianos (82) e canadianos (63), o que fora, durante os primeiros dois dias, fortemente negado pelo regime e pelas chefias militares, milhares de pessoas aproveitaram para sair à rua e voltar a contestar de forma directa o regime, com as forças de segurança a dispararem granadas de gás lacrimogénio contra a multidão para a dispersar.
Multidão que pedia a demissão do líder supremo, Ali Khamenei, a abertura democrática e reformas económicas para ultrapassar a forte crise que afoga a sociedade iraniana depois de o Presidente dos EUA, Donald Trump, ter reimposto as sanções económicas e abandonado unilateralmente, em 2017, o acordo nuclear com Teerão, onde estão ainda a União Europeia, a China e a Rússia.
Sanções essas que, recorde-se, tinham sido levantadas - permitindo ao Irão viver um curto período de abundância -, após a assinatura desse acordo que impedia o Irão de manter o programa nuclear, em 2015, pelo antecessor de Trump, Barack Obama. Teerão, entretanto, voltou a esse mesmo programa em pleno após a morte de Soleimani.
Mas, com os protestos contra o regime, foram igualmente para as ruas de Teerão centenas de apoiantes de Ali Khamenei, que se concentraram junto à embaixada do Reino Unido, depois de o embaixador britânico ter sido detido por breves momentos sob a acusação de ter estado por detrás da organização dos protestos anti-regime.
Após estes momentos mais tensos, que se seguiram a outros protestos, realizados nas últimas semanas antes da morte de Qassem Soleimani, e num cenário de forte presença das forças de seguranças nas ruas de Teerão e das principais cidades do Irão, um pais com mais de 80 milhões de habitantes e um dos maiores produtores de petróleo do mundo, segundo relatam as agências, apenas pequenos grupos, dispersos, continuaram a clamar contra o regime dos aiatolas.
A estranha calma após a morte do general herói
E mesmo a morte de Qassem Soleimani, que começou por ser um momento de grande tensão no Médio Oriente, com a hipótese do início de uma guerra aberta entre o Irão e os EUA, está, como refere, por exemplo, o correspondente do The Guardian para a região, Martin Chulov, a diluir-se na sua importância de forma mais acelerada que aquilo que seria de esperar.
E o que seria de esperar era o aproveitar desse episódio por parte dos "falcões" de Teerão para esticar cada vez mais a corda e lançar novos e mais pesados ataques contra bases e outros interesses dos Estados Unidos na região, fazendo cumprir o desejo enunciado pelo líder supremo - com quem Soleimani mantinha uma relação fraternal e clara - em vingar de forma severa a sua morte e expulsar os americanos do Médio Oriente.
O abate do avião ucraniano, e o melindre diplomático que torceu o ímpeto da resposta de Teerão, é uma das explicações mais óbvias para que o regime tenha embainhado de novo a espada da vingança, pelo menos circunstancialmente, mas isto contrasta excessivamente, como o sublinham alguns dos especialistas no complexo xadrez do Médio Oriente, com o clamor antiamericano que se ergueu no Irão, Iraque, Síria e Líbano ainda as "chamas" que envolveram o carro em que seguia quando foi morto Soleimani não estavam totalmente extintas.
Facto: a morte de Qassem Soleimani, o general herói do Irão, o homem que servia, tanto internamente como na vertente externa, os interesses do Irão, uma das figuras mais marcantes dos Guardas da Revolução, o comandante da sua força de elite, Quods, deveria abrir as portas para um dos mais perigosos, se não mesmo o mais perigoso, momentos no Médio Oriente desde que Bin Laden e a sua Al Qaeda destruíram o World Trade Center, em Nova Iorque, naquela manhã de 09 de Setembro de 2001.
Com lágrimas nos olhos, o aiatola Ali Khamenei, momentos após o míssil explodir no carro que transportava Soleimani e outros seis lideres de milícias iraquianas pró-Irão, jurou fazer desabar todo o terror do mundo sobre a América de Trump.
Tal dramatismo não poderia fazer esperar menos que um enorme caos no mundo mas especialmente na região, onde os EUA têm dezenas de bases.
Mas - apesar de terem sido lançados alguns mísseis balístico de precisão contra bases dos EUA no Iraque, sem causar vítimas - não foi isso que sucedeu, nem está a suceder. E Martin Chulov recorda que o caos que era esperado e expelido do Irão para o mundo, transformou-se, por causa do abate do avião da Ukraine International Airlines, num problema interno, de contestação interna ao regime.
Alguns analistas admitem mesmo que a ala moderada do regime de Teerão pode er neste contexto inusitado um momento único para o golpe de asa que pode, se bem apoiado do exterior, EUA e Reino Unido, levar a uma fragilização do poder dos aiatolas e permitir uma abertura democrática e o fortalecimento dos moderados, provavelmente liderados pelo moderado Presidente Rouhani.
Isto, apesar de no Domingo embora sem grandes consequências, terem sido disparados novos roquetes para o interior de bases militares no Iraque que são ou foram utilizadas pelos norte-americanos e aliados ocidentais na frente de combate montada nos últimos anos contra o "estado islâmico".
Mesmo o petróleo, a matéria-prima mais sensível aos sobressaltos político-militares no Médio Oriente, se mantém numa expressiva calma, mantendo-se já há três dias na casa dos 65 USD por barril em Londres, onde o Brent local determina o valor médio das ramas exportadas por Angola, um valor abaixo daquele que registava nas horas que antecederam o assassinato do general Qassem Soleimani.