Sergei Lavrov, que há dias, em conferência de imprensa com a sua homóloga britânica, Liz Truss, em Moscovo, depois de uma longa conversa a sós, dizia que a comunicação entre a Rússia e os governos ocidentais era semelhante à de um surdo perante um mudo, veio agora procurar retirar madeira da fogueira lembrando que ainda existe uma oportunidade para que a diplomacia e o diálogo se imponham face a esta escalada de tensões que pode conduzir a uma guerra na Europa que teria tudo para ser devastadora e deixar o mundo irreconhecível por muito tempo.

Basta lembrar que Moscovo e Washington, mesmo três décadas após o fim oficial, mas nem por isso definitivo, da Guerra Fria, com o colapso da antiga União Soviética, em 1989, ainda são, de longe, as duas capitais das maiores potências militares do planeta, desde logo pelos inigualáveis arsenais nucleares.

E ainda porque foi o próprio Presidente dos EUA, Joe Biden, que, na semana passada, admitiu que no dia em que russos e norte-americanos começarem a disparar uns contra os outros, é porque o mundo já está dentro da III Guerra Mundial, embora sempre sublinhando que não o deseja, nem que isso esteja no horizonte, porque a Ucrânia, mesmo face a uma invasão russa, não despoletará o avanço das tropas da NATO visto que o país não faz parte da Organização do Tratado do Atlântico Norte, que "dispara" automaticamente o previsto no Artº 5 apenas em caso de ataque a um dos Estados-membros.

Todavia, sendo certo que há pelo menos um mês que a paisagem mediática ocidental está entulhada de manchetes-rastilho, por exemplo, a CNN Portugal dizia ainda hoje, 14 de Fevereiro, que a invasão está prevista para quarta-feira, 16, parece que também a paciência russa está a chegar ao fim, alegadamente por causa da tal conversa de surdos referida por Lavrov.

Isto é, para o Kremlin, a presença de 130 mil tropas nas fronteiras com a Ucrânia, e dentro da Bielorrússia, um dos aliados da Rússia na região, não tem outro propósito que não seja garantir que as populações russófilas do Donbass, a geografia do leste ucraniano com as cidades de Donetsk e Luhansk a pivotear, onde o controlo pertence a forças independentistas com apoio de Moscovo, não são esmagadas pelas Forças Armadas ucranianas com material militar fornecido pelos americanos, enquanto decorre um braço-de-ferro para garantir que a NATO trava a sua expansão para leste, para junto da fronteira soberana da Rússia.

Mas para Washington e os seus aliados europeus, pelo menos os mais aguerridos, como a Polónia, ou os países do Báltico, Lituânia, Estónia e Letónia, em causa está a indomável vontade de Putin de alargar os seus territórios para oeste, a única forma de lhe dar o estatuto de potência euro-asiática e influência geoestratégica sobre a restante Europa por essa via, que acrescenta à dependência da economia europeia do gás natural exportado por Moscovo.

Mas, quando todos dizem que não querem a guerra, embora tudo pareça marchar em sentido contrário, Joe Biden porque entende que a guerra é uma forte possibilidade e acusa a Rússia de estar a dias de uma invasão, e Putin porque, de facto, mantém forças desmesuradas na fronteira com o vizinho, é Sergei Lavrov que lança uma escada sólida à paz, lembrando que não há nada que obstrua uma solução pacífica.

E, horas depois, desta declaração, de Minsk, a capital da Bielorrússia, veio a segunda corda para a paz, com o Presidente Alexander Lukashenko a dizer que a saída das tropas russas do seu país estava dependente de uma conversa com o Presidente russo. Os dois países estão a realizar exercícios militares não muito longe da fronteira ucraniana e estas palavras do polémico Lukashenko podem ser apenas uma forma de ganhar tempo, sem que se saiba bem para quê.

Face a isto, dos aliados da NATO o que chega é uma repetição gigantesca de manchetes a anunciar a guerra nos mais importantes media, com os lideres dos EUA e aliados a acusar Putin de estar quase a invadir, e com o G7, o grupo dos sete países mais ricos do mundo - Canadá, França, Alemanha, Japão, Itália, Reino Unido, EUA e a União Europeia -, vem, quase ao mesmo tempo, que está pronto para avançar com sanções à Rússia com "consequências maciças e imediatas para a economia russa" no caso de uma invasão à Ucrânia.

Com este rolo compressor mediático ocidental atirado contra a Rússia, onde raramente se encontra a posição russa face às acusações, excepto a negação de desejar e de querer invadir, mas quase nunca explicando as razões para a presença militar na fronteira, a Vladimir Putin resta manter o registo que vai repetindo nas sucessivas recepções aos lideres europeus, desde o francês Emmanuel Macron ao alemão Olaf Scholz. "Nâo está prevista nenhuma invasão", clama em vão o chefe do Kremlin...

Mas com, nos últimos dias, um acrescento que não é de somenos: o Kremlin tem agora insistido que a crise no leste europeu está a ter os EUA com o fósforo e a lata da gasolina na mão ignorando a vontade dos europeus, que serão os primeiros e os mais afectados por um conflito que possa, eventualmente, vir a acontecer.

É igualmente verdade que o histórico não é propriamente lisonjeiro para Putin, visto que ainda em 2014 tomou pela força a Crimeia, a península no sul da Ucrânia , onde vive uma larga maioria de população russa, e que, essa é uma das justificações, foi agregada à Ucrânia apenas em 1954, por Nikita Khrushchev, o líder da URSS que era natural da República Soviética da Ucrânia e parte maior da então União Soviética.

O gasoduto que leva dentro todos os problemas... ou quase

Todavia, este cenário, quente que baste, pode ainda vir a ficar mais instável? Pode, por razões económicas, como o próprio Presidente dos EUA já o admitiu, ao lembrar em Washington, aquando da visita do alemão Olaf Scholz, que se houver uma acção ofensiva russa, o nord stream 2, que é o multimilionário gasoduto que atravessa dos confins da Rússia ao coração da Europa para abastecer as grandes economias do Velho Continente com o seu gás, mais barato e abundante, será anulado rapidamente.

Isto, apesar de se tratar de um investimento de largas centenas de milhões de euros que está praticamente acabado e que levou vários anos de esforço multilateral. Mas quando foi questionado pelos jornalistas, perante o silêncio comprometedor de Scholz, como iria anular o nord stream 2, Joe Biden, secamente, respondeu apenas que assim seria e que não devia haver dúvidas quanto a isso.

Antes, Biden já tinha tranquilizado os seus aliados europeus de que não lhes faltará gás natural Made in USA, transportado por navios, caso o gás russo falhar... por qualquer razão. E ainda não estava iminente uma guerra declarada na Ucrânia. Pelo menos nas capas do jornais e ecrãs de TV ocidentais. Já nos planos para o futuro desenhados a régua e esquadro em Washington, não será bem assim.

Ao resto do mundo, resta aguardar, porque a haver alguma coisa a fazer para travar esta escalada desenfreada para uma situação de conflito aberto, que se saberia como começara, mas impossível de antecipar como terminaria, isso está nas mãos dos europeus, a quem mais interessará, mesmo que por vezez não pareça, se há ou não uma guerra brutal e de novo no seu solo, 70 anos depois do fim da II Guerra Mundial, aparentemente gerida por controlo-remoto a partir do outro lado do Atlântico.

Não há, face a este rodopio desenfreado de jogos de mentira e verdade, meias verdades e mentiras inteiras, forma de ler a realidade sem receio, porque se sabe há milénios que a verdade é a primeira vítima do processo de preparação para uma guerra. Mas é verdade que estamos nesse processo? Nem isso é claro. Porque podemos mui to bem estar apenas a observar um jogo do empurra para ganhar territórios de influência onde a ameaça de guerra é apenas instrumental.

E a política interna também conta?

Sim, e muito... Senão, veja-se o caso do primeiro-ministro inglês, o falcão mais aguerrido neste confronto com Putin, que vive momentos dramáticos com o seu futuro político pendurado por um fio devido à divulgação de vídeos e fotografias de festas com dezenas de pessoas na casa oficial, o nº 10 de Downing Street, em Londres, quando todo o país vivia em cerrado confinamento devido à pandemia da Covid-19.

Apertado fortemente no parlamento, com toda a oposição e alguns dos deputados conservadores do seu partido a exigirem a sua demissão sem perdas de tempo, Boris Johnson, cujas sondagens o empurram cada vez mais para o abismo político, tem nesta frente de batalha no leste europeu a escapatória das atenções internas, tendo tudo a ganhar em alimentá-la, como, de resto, o está a fazer com empenho.

Mas Joe Biden não vive melhores momentos nos Estados Unidos, com o aproximar das eleições de meio mandato para o Congresso, que vai enfrentar sob uma baixíssima popularidade, uma das mais baixas para um Presidente em primeiro mandato, e para quem, igualmente, a crise na distante Europa vem mesmo a calhar, juntando o útil - o negócio do gás natural, que tem nos EUA o maior produtor do mundo na actualidade e com fortes excedentes mas sem mercado para o colocar integralmente - e o agradável, uma forma de desviar as atenções para o seu problema de aceitação popular internamente, com alguns dos correligionários no Congresso a votarem contra as suas propostas legislativas mais simbólicas.

E Putin? O Presidente russo vive momentos semelhantes no que diz respeito à aceitação popular que o seu homólogo norte-americano, mas com a vantagem de a Rússia não viver propriamente uma democracia robusta e sem mácula, dando-lhe igualmente jeito manter uma crise em continuado para diversificar as atenções de uma população russa cada vez mais desejosa de alternância democrática no seu país.

E o Presidente ucraniano? Valodimyr Zelensky é quem mais tem a perder com esta crise, porque está a ver o seu país atrofiar com o cancelamento de cada vez mais companhias aéreas a voar para Kiev, com as comunidades dos países europeus e os americanos a deixarem o país aos milhares e com os investidores externos a manterem os seus capitais em stand by... Mas também ele tira dividendos desta crise, porque está a conseguir uma unidade nacional em torno da sua pessoa que estava em clara perda de viço com o avolumar dos problemas económicos em tempos de pandemia de Sars CoV-2.

Conclusão: Os principais protagonistas desta crise no leste europeu têm todos a ganhar, pelo menos do ponto de vista pessoal e político, com a manutenção desta crise. O problema vai ser conseguir que a crise não ganhe "vida própria" e leva a que, todos ou parte deles, percam o controlo da situação e o equilíbrio periclitante colapse deixando uma guerra descontrolado como escombros que vão soterrar a vida de milhares de inocentes.

Conclusão

Se uma guerra eclodir, o mundo como o conhecemos deixará de existir por longas décadas, período durante o qual estará de pernas para o ar... e nós com ele.

E já está um bocadinho, como se pode ver pela turbulência nas bolsas e nos mercados petrolíferos, num sobe e desce frenético e ao sabor do... tiroteio mediático.

Curiosidade: Na fotografia pode-se ver Putin e BIden a conversar, aparentemente, de forma descontraída, com o globo terrestre no meio. O Globo é antigo, mas a foto não, porque o Presidente norte-americano foi eleito apenas há cerca de um ano.