Por exemplo, a República Centro-Africana só esta semana recebeu as primeiras 40 mil doses através do mecanismo Covax, criado no âmbito da ONU com a participação de várias organizações internacionais para abrir caminho à vacinação dos menos abonados e com menor capacidade de disputar doses no mercado, o mesmo que garantiu as 624 mil doses da AstraZeneca a Angola no mês de Março.

Na esmagadora maioria dos países do continente africano as campanhas de vacinação estão apenas a dar os primeiros passos, como é o caso de Angola, apesar de estarem a ser adquiridas nos mercados milhões de doses e já com centenas de milhares de pessoas com, pelo menos, a 1ª dose, na Europa, nalguns países, como a Alemanha, os seus cientistas apostam numa 3ª dose para garantir o máximo de eficácia e, até, na vacinação de adolescentes que, como se sabe, são uma faixa etária de reduzido ou mesmo nulo risco desde que não possuam doenças debilitantes.

Apesar dos sucessivos apelos de lideres mundiais, como o próprio Secretário-Geral da ONU, António Guterres, o director-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, ou o Presidente João Lourenço, todos em uníssono a lembrar que nesta pandemia ou se salvam todos ou não se salva ninguém, a realidade está longe de corresponder a esta evidência e não está afastada a possibilidade de o Sars CoV-2 se transformar, como outros agentes patológicos, num perigo apenas para uma parte do mundo, a mais empobrecida parcela da Humanidade, como o Novo Jornal lembrava aqui.

E as coisas chegaram a um ponto de tão evidente assimetria na dispersão das campanhas de vacinação que, na Cimeira da Saúde que esta semana decorre por iniciativa do G20, através da sua presidência rotativa da Itália, mas também da aposta já manifestada pela presidência portuguesa da União Europeia, o Fundo Monetário Internacional, o próprio G20 e os principais laboratórios que produzem as vacinas em uso acabam de anunciar um especial empenho e esforço no sentido de garantir a aceleração do processo de vacinação nos países mais pobres.

Este anúncio, feito na sexta-feira, surge de uma rugoso distorção daquilo que a melhor ciência já demonstrou e que é a evidência de que o Sars CoV-2 tem uma forte capacidade de mutação e enquanto existirem bolsas desprotegidas pela vacinação, não está afastada a possibilidade do surgimento de uma variante que seja capaz de resistir aos imunizantes conhecidos, deitando por terra o esforço em curso, mesmo entre os mais ricos e com mais população vacinada.

E os dados não permitem dúvidas. Enquanto nos países ricos, um terço das populações, incluindo a quase totalidade dos idosos, os fragilizados por comorbilidades e o pessoal mais exposto, como o hospitalar, estão vacinados, nos países pobres, como os africanos, alguns asiáticos e latino-americanos apenas 0,3 por cento já têm uma dose, baixando de forma radical a percentagem que já tem as duas doses.

Uma das razões para este cenário é a crise pandémica na Índia, com recordes diários em casos e mortes, que se viu na necessidade de suspender as exportações de vacinas no âmbito do mecanismo Covax, o que, sendo o maior produtor mundial, levou a uma gigantesca queda no ritmo de vacinação entre os países pobres.

No entanto, apesar de a Pfizer/BioNTech, a Moderna e a Johnson & Johnson terem ido a esta Cimeira Mundial da Saúde prometer reforçar a entrega da vacinas aos menos abonados, avançando com um número imponente, de 3,5 mil milhões de doses (África tem 1,2 mil milhões de habitantes), a preço de custo, isso só acontecerá até ao final de 2022, quando já todos os habitantes do "1º mundo" estiveram vacinados com duas doses e nalguns casos, com três.

Nesta Cimeira voltaram a ouvir-se aas críticas de António Guterres, que chegou mesmo a falar num "nacionalismo das vacinas" como que alertando para o que de pior a Humanidade já assistiu quando os países se fecham sobre si mesmo, ou ainda a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, que defendeu que os imunizantes devem chegar a todos e a todo o lado do mundo.

Alguns países voltaram a prometer reforçar a disponibilização de vacinas, com a União Europeia a garantir perlo menos 100 milhões, o que vem somar à promessa recente do Presidente dos EUA, Joe Biden, que disse estar disponível para, em Junho, libertar pelo menos 20 milhões de doses.

Por detrás da Cimeira

Como recorda a Lusa, o acesso às vacinas para os países mais vulneráveis, a solidariedade internacional e a prevenção de futuras pandemias estiveram no centro desta reunião dos Chefes de Estado e de Governo do G20, que incluiu a Comissão Europeia, Estados africanos e asiáticos e 12 organizações internacionais e fundações privadas.

Para pôr fim à pandemia e às suas devastadoras consequências económicas e sociais, o Fundo Monetário Internacional (FMI) apresentou um plano em Washington, cujo financiamento está estimado em 50 mil milhões de dólares, com o objectivo de vacinar pelo menos 40% da população mundial até ao final do ano.

Trata-se de um valor, que, embora pareça significativo, é modesto em comparação com os pacotes de estímulo massivo postos em prática pelos países ricos - tais como os últimos 1,9 triliões de dólares nos Estados Unidos.

É também "pequeno em comparação com os potenciais benefícios de um fim mais rápido da pandemia, estimado em cerca de 9 biliões de dólares" para a economia global até 2025, dizem os economistas do FMI

A declaração final da Cimeira Mundial da Saúde, conhecida como a "Declaração de Roma", endossou um compromisso dos países mais ricos para promoverem a produção de vacinas em África através da transferência de tecnologia.

"Temos de vacinar o mundo e depressa", advertiu o primeiro-ministro italiano, Mario Draghi.

O texto não menciona, contudo, a ideia controversa de uma suspensão temporária das patentes de vacinas das empresas farmacêuticas, mas defende a eliminação das barreiras à exportação.

Através da "Declaração de Roma", os países do G20, que agrupa as 20 economias mais ricas do planeta, comprometem-se a acelerar a luta contra a pandemia e a recuperação da economia mundial.

Para tal, disponibilizam-se para "reforçar a arquitectura médica multilateral, bem como apoiar o objectivo de alcançar uma recuperação sustentável e inclusiva que permita a todos os seres humanos beneficiar dos melhores padrões de cuidados".

"Promover um sistema comercial multilateral devido à importância de uma cadeia de abastecimento aberta, resiliente, diversificada e eficiente ao longo de toda a cadeia de emergência sanitária" é outro dos propósitos, assim como "assegurar o acesso atempado, equitativo e acessível a uma prevenção de qualidade, segura e eficaz para todos".

Os países do G20 estão disponíveis para "apoiar os países de baixo e médio rendimento para desenvolver o conhecimento e a capacidade de produção local ou regional" e a "investir no pessoal de saúde em todo o mundo, bem como em laboratórios de saúde pública e de saúde animal, para que dados e amostras possam ser rapidamente trocados em caso de crise".

"Investir na cooperação local, internacional e multilateral em investigação, desenvolvimento e inovação em ferramentas de saúde" e "coordenar medidas e respostas a crises farmacêuticas e não-farmacêuticas, como parte de uma recuperação sustentável e equitativa" são intenções dos países do G20 que ficaram registadas na declaração.

A pandemia de covid-19 provocou, pelo menos, 3.432.711 mortos no mundo, resultantes de mais de 165 milhões de casos de infecção, segundo um balanço feito pela agência francesa AFP.

A doença é transmitida por um novo coronavírus detectado no final de 2019, em Wuhan, uma cidade do centro da China.