Vladimir Putin não trouxe qualquer surpresa para este discurso em Moscovo nem deu especial importância aos feitos russos na operação especial que iniciou na Ucrânia em 24 de Fevereiro de 2022, tendo chamado a este conflito o que ele sempre foi mas nunca assim reconhecido internamente: uma "guerra".

Mas não deixou de ser ao mesmo tempo duro e pacifista, porque acusou o ocidente liderado pelos Estados Unidos da América de estar a criar um sistema global de "roubo, violência e supressão" de forma a proteger a sua hegemonia gerada pela ordem global baseada nas suas regras que criou após a II Guerra Mundial, mas garantiu também que a Federação Russa quer viver em paz com o resto da Europa e que os russos não têm sentimentos negativos para com os povos ocidentais.

Numa cerimónia que visa enfatizar o feito soviético na derrota do nazismo mas que coincide com a mais relevante e mortífera das guerras na Europa dos últimos 70 anos, e onde a Rússia é o país invasor da Ucrânia, na qual estiveram, com ele no palco da Praça Vermelha, vários lideres da Eurásia e Ásia Central, entre estes do Cazaquistão, do Uzbequistão e da Arménia -, o chefe do Kremlin aproveitou para sublinhar a perfídia das "ambições nazis" de supremacia global.

E, numa comparação de narrativa com guião, Putin lembrou que as elites ocidentais, a quem chamou "elites globalistas" continuam a insistir "no seu excepcionalismo" que demonstram "colocando pessoas contra pessoa, dividindo sociedades, provocando guerras sangrentas e golpes de Estado" com uma camada abrangente de "russofobia e agressivo nacionalismo".

Com a guerra na Ucrânia em pano de fundo - sem a esperada vitória definitiva sobre a resistência ucraniana na cidade de Bakhmut para anunciar - e com um contexto onde o receio de que pudessem surgir "surpresas" a criar disrupções nas 21 paradas previstas em todo o país, todas, excepto a de Moscovo, canceladas depois dos ataques com drones sobre o Kremlin na semana passada, Vladimir Putin não desarma e aponta o dedo aos EUA e aliados ocidentais de pretenderem "ditar as regras em toda a Humanidade, segundo a sua vontade e interesses" de forma a criar um domínio global através da "violência, roubo e supressão".

E, em tom de ameaça, acrescentou: "Parece que não sabem onde levou a ambição dos nazis e quem é que derrotou esse monstro diabólico" há mais de sete décadas.

Com a Praça Vermelha engalanada a propósito, mesmo com a memória da II Guerra Mundial e dos mortos russos nesse conflito global devastador, onde morreram mais de 25 milhões de russos - algumas fontes falam em 27 milhões - num total de mais de 50 milhões durante os cinco anos de conflito, Putin não deixou de se dirigir aos militares russos que estão a combater na Ucrânia, sublinhando que "todo o país reza por eles" acabando por aproveitar este discurso para voltar a defender a invasão da Ucrânia.

E aproveitou para estabelecer paralelismos entre o conflito que acabou há 78 anos e aquele que continua na Ucrânia, defendendo que "também hoje a civilização está perante uma situação de mudança existencial, com uma guerra real declarada contra nós (a Rússia)", embora seja claro que foi a Rússia a invadir o país vizinho, apesar de ser conhecida a retórica russa (ver "contexto da guerra" nesta página) de que esta serviu para travar uma ameaça de vida ou morte dos países da NATO começada logo após a queda da URSS, em 1990.

"Estamos orgulhosos de todos aqueles que participam na operação militar especial porque o futuro do nosso povo depende deles e do resultado que vão alcançar", disse Putin, acrescentando um argumento antigo: "O objectivo dos nossos inimigos não é novo e é conseguir a desintegração e destruição da Rússia".

Apesar disso, Vladimir Putin enfatizou a ideia de que a Rússia quer viver "num futuro pacífico".

Isto tudo pouco antes da parada militar que envolveu milhares de militares e centenas de veículos militares, incluindo vários tipos de misseis intercontinentais com capacidade para transportar dezenas de ogivas nucleares.

Mas, segundo o embaixador russo em Washington, Anatoly Antonov, alguns dos militares veteranos norte-americanos que estiveram na Europa a combater os nazis na II Guerra Mundial não puderam, como desejavam e costumam fazer, deslocar-se a Moscovo para participar nesta parada em reconhecimento do contributo russo para a vitória aliada, porque foram ameaçados de que ficariam sem os passaportes se o tentassem fazer.

Ainda assim, o diplomata russo disse que a Rússia tem orgulho no contributo dos militares norte-americanos para a vitória sobre a Alemanha nazi, e que a "política hostil" dos EUA não vai "minar o espirito de camaradagem" que existiu durante a Grande Guerra e onde os americanos "foram igualmente heróis".

Ataques a Kiev

Entretanto, durante a noite de segunda para hoje, 09, as forças russas repetiram os fortes ataques com misseis sobre cidades ucranianas, visando especialmente a capital do país, Kiev.

Este ataque, que se segue a uma vaga de drones lançados na segunda-feira sobre seis cidades ucranianas, levou perto de 20 misseis de cruzeiro a Kiev, lançados a partir de bombardeiros estratégicos, garantindo as autoridades militares russas que todos visaram alvos militares.

Segundo os media russos, que citam comandantes militares, os misseis de precisão Kh-101, lançados de bombardeiros estratégicos Tupolev-95 a partir do Mar Cáspio, foram lançados agora porque na vaga de drones anterior, a Rússia tinha levado os sistemas de defesa antiaérea à exaustão, conseguindo assim grande sucesso no que toca aos alvos visados.

Estes ataques, segundo analistas militares, como o coronel Mendes Dias, ouvido pela CNN Portugal, visam desgastar a capacidade ucraniana para avançar com a esperada contra-ofensiva da Primavera, apostando especialmente nos armazéns com material militar enviado pelos países ocidentais.

São ainda resposta aos ousados actos de sabotagem no interior da Rússia realizados por forças especiais ucranianas nas últimas semanas, de onde se destacam um recente ataque ao escritor nacionalista Zakhar Prilepin, com uma carga explosiva colocada na sua viatura que o deixou à beirada morte, ou ainda os dois drones lançados contra o Kremlin, na semana passada, além de sabotagens de linhas de caminho de ferro e drones atirados contra depósitos de combustíveis e bases navais na Crimeia.

E para quando a paz?

Aparentemente, este é um momento decisivo nesta guerra, porque, ao cansaço claro dos países da Europa ocidental e nos EUA, com os efeitos devastadores desta guerra nas suas economias, com uma inflação que parece não ser controlável, o crescente protesto popular, embora ainda pouco expressivo nas vozes dos lideres mais relevantes, à excepção do Presidente francês, Emmanuel Macron, começam a surgir também nos EUA sinais de procura de novos caminhos.

Curiosamente, como sempre sucede, foi Henry KIssingir, o velho leão da diplomacia norte-americana, com 99 anos, a mostrar o caminho, ainda em 2022 (ver aqui e aqui), ao dizer que não havia alternativa às negociações para esta guerra, tendo agora voltado, numa entrevista à CBS Newes, este Domingo, a dizer que se está a chegar a um ponto de viragem em direcção à mesa das negociações.

Diz o velho estadista, que serviu diferentes Administrações, entre Richard Nixon e Gerald Ford, na década de 1970, mantendo-se sempre como uma referência para todas as que lhes sucederam, que a entrada da China no esforço diplomático para encontrar uma saída para o conflito vai conduzir inevitavelmente a um ponto de viragem.

Kissinger estima que até ao final deste ano de 2023 esse "efeito China" nas conversações de paz será visível e efectivo na entrada para um novo capítulo: "Agora que a China entrou neste jogo negocial, estou certo que se chegará a um ponto decisivo até ao final de 2023", acrescentando que "se estará então a falar seriamente de um processo de negociações e negociações efectivas sem demora".

Estas palavras de Henry Kissinger emergem de um momento particularmente sugestivo porque também o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, já fez saber que se começa a ver com bons olhos em Washington um recomeço com Pequim depois de há dois meses as coisas terem ficado feias quando, por causa do estranho episódio do alegado balão-espião chinês, o próprio ter cancelado uma deslocação oficial à China, criando um mal-estar evidente entre as duas maiores potências económicas do mundo.

A entrada da China nestes "jeux" diplomáticos é considerado por muitos como um momento fulcral, porque outos "jogadores" terão mais dificuldades em alterar radicalmente a situação no terreno, apesar das suas boas vontades, como o Brasil ou mesmo a União Africana.

Só Pequim e o Presidente Xi Jinping conseguirão extrair o Presidente Volodymyr Zelensky de uma situação em que este, se colocou, ou foi colocado pelos seus conselheiros mais radicais, como Mikhailo Podoliak, ao ter criado legislação, aprovada no Parlamento, a Rada, que o impede de negociar com Vladimir Putin e, sem isso, não é possível encontrar uma saída definitiva.

Mas a China, com a sua única capacidade de incluir a Ucrânia na sua vasta rede comercial, a Nova Rota da Seda, apoiar a reconstrução do país no pós-guerra e financiar o equilíbrio da balança de pagamentos de Kiev, que está num caos, além de poder surgir como um protagonista que não apoiou militarmente nenhuma das partes, é a esperança europeia - mesmo contra a vontade da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e do seu diplomata-chefe, Joseph Borrell - e do "Imenso Sul" para acabar com este foco de instabilidade global, desde logo alimentar nos países mais pobres porque os contendores são dois dos maiores exportadores de cereais do mundo.

Outro sinal oriundo de Washington, embora não sendo novo, mas agora é mais sonoro, é que a Administração Biden, que impediu, com o Reino Unido, do então primeiro-ministro Boris Johnson, em Março de 2022 as conversações de paz Kiev-Moscovo, diz agora que são os ucranianos que têm de decidir se e quando querem partir para as negociações de paz com os russos.

Será já um efeito-China? Ver-se-á em breve. Até porque americanos e chineses querem deixar para trás alguns alçapões, porque dependem mutuamente uns dos outros para as suas economias florescerem e esta guerra na Ucrânia está a ser um constrangimento irritante.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, incluindo o sector energético, do gás natural e em parte do petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 9,5 milhões de refugiados internos e nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.