Antes que as comitivas enviadas por Kiev e Moscovo para a retoma das negociações presenciais, depois de duas semanas em que a conversa foi mantida por videoconferência, se sentassem à mesa, o Presidente da Turquia fechou-se, com cada uma das delegações, à vez, para lhes dizer que este episódio trágico para toda a humanidade já vai longe demais e que todos têm de se esforçar mais para que sejam conseguidos avanços sólidos neste esforço para um cessar-fogo, primeiro, e depois, a assinatura de um definitivo acordo de paz.

Para isso, continuou Erdogan, não é possível manter o espírito de que se vai conseguir a paz derrotando o inimigo, porque isso é uma ilusão. "Não haverá paz com derrotados!", enfatizou.

A Turquia assumiu as rédeas desta fase das negociações depois de terem já passado por solo bielorrusso, na primeira semana, a seguir pelo território neutro do "digital", e, agora, as partes em conflito estão de novo na Turquia, onde, há cerca de duas semanas, teve lugar na cidade de Antalya, no sul, o mais importante capítulo deste processo, que foi o diálogo directo entre os ministros dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, e da Ucrânia, Dmitri Kuleba, sob os auspícios do homem que tutela a diplomacia no Governo de Ancara, Mevlut Cavusoglu.

Estas negociações chegam à Turquia quando o mundo começa a reagir em crescendo e com cada vez maior efusividade nos protestos devido aos aumentos dos preços dos bens alimentares e dos combustíveis - na Europa já há pneus a arder nas estradas devido ao aumento do gasóleo - porque em conflito estão dois dos maiores produtores de cereais e de fertilizantes do mundo, e o maior fornecedor de gás natural à Europa e um dos maiores produtores do mundo desta matéria-prima, além de ser o segundo maior exportador de petróleo.

Mesmo nos EUA começam a surgir sinais de impactos negativos na economia desta guerra que surpreende os analistas, com o fenómeno da estagflação a começar a impor-se, que é quando a inflação sobe e o crescimento é negativo, embora o emprego esteja a aumentar ligeiramente, sendo esse um dado essencial para que esta ocorra oficialmente, e na Europa é já um dado adquirido, com mais desemprego, empresas a fechar, crescimento a abrandar, inflação galopante...

Este cenário leva a que se comece a olhar para esta guerra como um obstáculo de remoção urgente, porque os efeitos de refluxo das sanções à Rússia pelas economias ocidentais, as mais pesadas de sempre aplicadas a um país, começa a fazer-se sentir demasiado à mesa das famílias europeias e norte-americanas e o seu efeito nas eleições - a França tem eleições dentro de 10 dias e os EUA vão a votos nas eleições intercalares em Novembro, por exemplo -, é uma questão de tempo, o que os políticos ocidentais não parecem estar dispostos a correr esses risco suplementares.

Mas também a Rússia, que já está a sentir fortemente o peso das sanções, tendo voltado as filas para a aquisição de bens que já não se viam desde a década de 1990, devido às sanções, como o congelamento de contas no estrangeiros, inclusive as do Banco Central da Rússia, a debandada das empresas ocidentais, como é disso exemplo mais simbólico a McDonalds, e a Ucrânia, um país com a sua geografia mais a leste devastada pela guerra e com uma soma oficial, feita pelo Governo de Kiev, de 500 mil milhões de euros de perdas económicas com este conflito.

À mesa das negociações, todavia, não devem chegar nesta terça-feira, algumas questões essenciais para que seja possível levar à mesa das negociações os dois Presidentes, Vladimir Putin e Volodymyr Zelensky, situação que deve suceder apenas quando estiverem praticamente definidas as linhas gerais de um acordo, e quando faltarem acertas apenas detalhes mínimos.

Da parte da Ucrânia ainda não é tempo para falar de cedências à integralidade territorial, o que deixa, assim, também, de fora a questão essencial e inegociável. para já, dos russos, que é a independência das republicas do Donbass, no leste, Donetsk e Lugansk, e ainda a Península da Crimeia, mas com fortes possibilidades de avanços concretos em matéria humanitária, desde logo os corredores de saída de civis das cidades cercadas ou sob fogo de artilharia, e ainda as duas já confirmadas cedências inicialmente ridas como fundamentais: Kiev abdica da NATO e aceita o estatuto de neutralidade, enquanto Moscovo não quer já mudanças de regime no país invadido nem uma ocupação territorial de larga escala, mesmo que concentrada a leste do Rio Dniepre, que divide a Ucrânia em dois.

Entretanto, as relações entre Moscovo e Washington vão de mal a pior, o que não pode ser bom para o mundo considerando que se trata das duas maiores potências nucleares do mundo.

Depois de o Presidente dos EUA ter dito na Polónia, na passada semana, gerando uma forte polémica, que escureceu todo o seu périplo europeu, excepto no campo dos negócios do gás e das armas, que foi um sucesso, que queria o Presidente russo fora do poder, este veio agora dizer que não pedia desculpa a Putin e que apenas expressou uma "indignação moral" e não uma exigência de "mudança política" na Rússia.

Joe Biden explicou, mesmo depois de ter sido criticado fortemente por lideres europeus, como o francês Emmanuel Macron, devido às suas palavras consideradas inoportunas e descabidas, que não pedia desculpa a Putin porque "estava a exprimir uma indignação moral" sobre o senhor do Kremlin e anão a pedir a sua remoção do cargo..

Sobre eventuais impactos negativos destas palavras no campo diplomático, no terreno dos combates e na mesa das negociações, Biden disse não estar preocupado com isso.

A fake mais bizarra desta guerra

O dia de segunda-feira ficou marcado, não só pelo adiamento das conversações na Turquia para hoje, terça, mas também pela notícia falsa espalhada pelo credível Wall Street Journal, que disse, tendo essa notícia sido, depois, e de imediato, republicada por centenas de media ocidentais, dezenas deles na Europa, que o milionário russo Roman Abramovich, dono do clube inglês Chelsea FC, tinha sido envenenado por agentes secretos russos durante as primeiras rondas negociais entre Moscovo e Kiev onde estava a pedido dos ucranianos.

Horas depois, a notícia era desmentida com estrondo por várias fontes oficiais, desde logo o Governo de Kiev, e pelos serviços secretos dos EUA, que disseram ter-se tratado apenas de uma indisposição ambiental.

Abramovich foi "convocado" para estas negociações por se tratar de um amigo do Presidente ucraniano, Zelensky, e ter boas relações com Putin.

A Rússia já veio considerar esta notícia como parte do arsenal ocidental da "guerra comunicacional" em que se transformou o conflito na Ucrânia.

Recorde-se que a Rússia suspendeu a maioria dos media ocidentais, da CNN à BBC, no país e cerceou fortemente o acesso às redes sociais, enquanto na Europa e nos EUA os principais media russos globais, como a Russia Today e o Sputnik News foram tirados do ar.

Analistas já consideram que esta é a guerra com a cobertura mediática mais parcial de sempre, superando em muito a guerra dos EUA e aliados no Iraque, no Afeganistão ou na Líbia, em 2010.

Mas o que esta situação gerada pelo Wall Street Journal, embaraçosa para centenas de órgãos de comunicação social de todo o mundo, deixou em evidência foi que mesmo os mais respeitáveis media estão a ser vítimas colaterais da propaganda criada em laboratórios de um e de outro lado para procurar vantagem no tereno desta que já é considerada a primeira guerra híbrida da história da humanidade, onde o campo da informação é tão ou mais importante que o campo das batalhas.

E deixou ainda em evidência que os media europeus e norte-americanos apostaram claramente numa cobertura pró-Ucrânia deste conflito, que, sublinhe-se, começou com a invasão da Rússia à Ucrânia justificada por razões históricas mas sem uma razão imediatamente perceptível antes do avanço das colunas militares de Moscovo.

Rússia ameaça fechar torneira do gás para os países hostis

Moscovo estabeleceu a data de 31 de Março como limite para que os clientes do seu gás paguem em rublos, condição vital para que o gás continue a correr nas canalizações dos europeus, apanhando de surpresa os países ocidentais, que demoraram mas acanaram por reagir com igual força e determinação.

Se esse prazo não for cumprido, a torneira vai mesmo fechar para os países que estão por detrás das pesadas sanções à Rússia, anunciou o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, citado pela Russia Today.

Recorde-se que, apesar da guerra na Ucrânia, o gás russo nunca deixou de atravessar a Ucrânia em gasodutos existentes no país, que não foram tocados pelo conflito, mas quando, se isso vier mesmo a acontecer, Moscovo fechar a torneira, a economia global levará outro safanão de tal magnitude que alguns analistas admitem que vai ser difícil recuperar no curto-médio prazo.

Porém, esse momento, apesar de alguns dirigentes russos já terem vindo dizer que defendem o corte no fornecimento imediato após as declarações de Habeck, ainda não chegou e poderá não chegar, até porque a Rússia estaria a abdicar de mais de 500 milhões de euros por dia, que é quando a Europa paga a Moscovo pelo seu gás, mantendo alguns analistas a opinião de que se trata de um "bluff" do Kremlin.

Com esta medida, e depois das pesadas sanções com que o ocidente puniu a Rússia pelo avanço das suas forças militares na Ucrânia, a 24 de Fevereiro, Putin pretende sacudir a pressão sobre a moeda nacional russa, porque as grandes economias europeias teriam de procurar rubos no mercado para pagar as contas do gás, o que geraria o efeito normal quando a procura aumenta sobre um produto que é elevar o seu preço, neste caso o valor do rublo.

Entre as formas de obter rublos está a compra directa da moeda russa a países que os tenham graças às trocas comerciais com Moscovo, ou então vender bens à Rússia para que esta pague em rublos de forma a depois os receber de volta a troco do gás que fornece, embora esta possibilidade fosse, naturalmente, criar uma brecha na muralha das sanções ocidentais à Rússia.

Nos próximos dias saber-se-á qual o desfecho deste braço-de-ferro, quando russos e ucranianos voltam esta semana às negociações presenciais - estava previsto ser hoje mas poderá ser adiado para terça-feira - na Turquia e onde um cessar-fogo está a ser negociado, apesar das dificuldades sentidas até agora, apesar das cedências de um e do outro lado, seja de Kiev, que aceita a sua neutralidade e não-entrada na NATO, seja de Moscovo, que abandonou já a exigência de uma mudança de regime na Ucrânia.

Mas falta ainda muito caminho, desde logo a questão da integralidade territorial do país, como exige o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, seja esse mesmo assunto na perspectiva russa, que é o de manter fora da mesa das negociações a anexação das Crimeia e, mais recentemente, as duas repúblicas do Donbass, Donetsk e Lugansk, pró-russas, apoiadas por Moscovo sem quaisquer camuflagens

Contexto

A 24 de Fevereiro, depois de semanas de impaciente expectativa, as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de KIev da soberania russa da Península da Crimeia, integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1992, com o colapso da União Soviética.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios...

Milhares de mortos e feridos e mais de 4 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.