Foi o Secretário da Defesa norte-americano, Lloyd Austin, depois de uma deslocação relâmpago a Kiev, nas últimas horas, com o Secretário de Estado Antony Blinken, que veio a público desfazer as dúvidas: os Estados Unidos da América querem que esta guerra continue até que a Rússia esteja de tal forma enfraquecida que deixe de ser uma ameaça militar e fique economicamente debilitada.
Com esta afirmação, Austin detonou todas as expectativas de algum sucesso no "tour" pela paz que o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, iniciou na segunda-feira, começando pela Turquia, onde, em Ancara, se encontrou com o Presidente Recep Erdogan, com quem analisou os objectivos desta sua iniciativa e procurou energia suplementar para que junto de Vladimir Putin, em Moscovo, esta terça-feira, e depois, na quinta-feira, em Kiev, com o Presidente Volodymyr Zelensky, consiga arrefecer os ânimos e obter garantias de alguma boa vontade para acabar com a mais trágica guerra na Europa em décadas.
Quando, já depois de terem deixado a Ucrânia, o Secretário da Defesa dos EUA, Lioyd Austin, e o Secretário de Estado, Antony Blinken, detonaram a iniciativa de Guterres, o primeiro admitindo que Washington quer usar esta guerra como ferramenta para desvitalizar o poderio militar de Moscovo, e quanto mais tempo durar, melhor, e para meter de rastos a sua economia, e o segundo a prometer mais e mais armas para fortalecer a capacidade de resistir os ucranianos, de Moscovo, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, vinha a terreiro advertir para o sério risco de uma guerra nuclear como consequência deste cenário.
Lavrov falou em III Guerra Mundial como possível resultado deste gigantesco apoio militar dos países da NATO à Ucrânia, mas, já antes, Putin e Joe Biden tinham admitido que um confronto entre EUA e a Rússia levará, inevitavelmente, a uma devastadora guerra nuclear, o que faz deste momento algo muito semelhante ao que aconteceu em 1962, com a denominada crise dos mísseis em Cuba, quando o mundo esteve à beira de implodir num cogumelo nuclear depois de a então URSS começar a instalar misseis na ilha caribenha e vizinha dos EUA.
Alguns analistas estão a começar a olhar para este conflito na Ucrânia, que começou com a invasão russa a 24 de Fevereiro, como, de facto, um confronto entre a NATO e a Rússia, considerando que as forças ucranianas já só conseguem resistir ao poderio militar de Moscovo com um constante e gigantesco apoio militar dos EUA e dos seus aliados, o que faz com que se trate de uma guerra onde os países ocidentais usam terceiros para combater os russos, colocando frente a frente e em cenário de guerra total o equipamento militar dos dois lados da barricada, num braço de ferro que não ocorria desde a Guerra Fria, pelo menos com esta intensidade.
O que pode fazer Guterres?
Pouco! Admite a generalidade dos analistas. O Secretário-Geral das Nações Unidas sabe que esta sua tarefa tem escassa viabilidade no que diz respeito a conseguir um acordo de paz, ou mesmo um mais simples cessar-fogo, porque não só os lados estão inflamados mas também porque os interesses das potências que estão a apoiar militarmente a Ucrânia - só os EUA já colocaram 3,6 mil milhões USD em armas na Ucrânia - não querem que os canhões se calem enquanto os seus objectivos não estiverem conseguidos. E o que os EUA querem foi agora esclarecido por Lloyd Austin...
Mas o português que dirige a ONU, com idade e experiência longas, sabia que assim era, que a sua tarefa era espinhosa e foi logo disso relembrado assim que anunciou este "tour" pelo leste europeu, com o Presidente ucraniano a criticá-lo com violência por ir a Moscovo antes de ir a Kiev, deixando no ar a ideia de que, com isso, estaria a privilegiar o infractor, o atacante. Guterres ainda esboçou uma explicação via assessoria de imprensa, de que a viagem foi desenhada assim porque foi Moscovo quem primeiro respondeu à proposta enviada ao mesmo tempo para as duas capitais em conflito, mas de pouco valeu e esse dado foi ignorado por quase todos os media.
Ao mesmo tempo, no momento em que o Secretário-Geral das Nações Unidas se propõe passar ao terreno a sua credibilidade enquanto negociador último para um acordo que baixe a tensão no leste europeu, do lado ucraniano a resposta não podia ser mais belicista, com Zelensky a reforçar o pedido de armas ao ocidente, ao que foi correspondido de imediato, e com o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Dmiti Kuleba, a vir a público defender que a Rússia está à beira de perder esta guerra e que basta um aumento das armas que chegam à resistência ucraniana para que a vitória militar seja conseguida em pouco tempo.
Todas estas declarações empoladas de vitórias ao virar da esquina por parte da Ucrânia, ou os anúncios diários do sucesso dos ataques russos, seja com a precisão dos seis misseis, seja com o avanço das tropas no Donbass e sudeste ucraniano, onde decorre a 2ª fase desta guerra, não podem ser considerados como informação jornalística provada, mas são, admitem os analistas, essenciais para se perceber o estado de ânimo das partes.
É igualmente factual que tanto Moscovo como Kiev têm recusado propostas vindas do outro lado da barricada para avanços nas negociações, desde logo, nas últimas horas, a dos ucranianos de levar delegações de alto nível para as imediações da Azovstal, em Mariupol, para negociar a questão dos perto de 2 mil militares do Batalhão Azov, composto por nacionalistas radicais e de génese neo-nazi, e centenas de civis entrincheirados na unidade metalúrgica, que está totalmente destruída, sobrando apenas alguns túneis do tempo da Guerra Fria, ou da Rússia, de abrir totalmente a área para que os civis deixem esta zona, que os ucranianos negam alegando falta de condições de segurança mas que o Ministério da Defesa russo diz que é porque precisam dos civis como escudos humanos para se protegerem.
A pesar para o lado de António Guterres nesta sua iniciativa arriscada, porque o seu prestígio, e do cargo que ocupa, podem ser fortemente abalados por um eventual, quase inevitável, insucesso deste seu "tour" pela paz, está o facto de tanto Kiev como Moscovo têm repetido que como todos os conflitos armados, também este será culminado com a assinatura de um acordo entre as partes... só que ambos os lados querem chegar a esse momento em posição de vantagem conseguida no campo de batalha.
Mas já hoje se poderá começar a perceber o que espera Guterres, quando este chegar a Moscovo para um primeiro encontro com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, e depois com o senhor do Kremlin, Vladimir Putin, de quem espera ouvir até onde pode ir para permitir uma oportunidade à paz.
Mas vai ser preciso esperar por quinta-feira, depois do encontro em Kiev com o chefe da diplomacia ucraniana, Dmitri Kuleba, e com o Presidente Zelensky, para se ficar a saber o grau do sucesso, ou do insucesso, desta iniciativa de António Guterres.
Quatro questões a ter em conta
1 - Um conselheiro do Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, Oleksiy Arestovich, disse na segunda-feira que os incêndios registados em depósitos de combustível na Rússia poderão ser o início de ataques de guerrilha, em resposta à invasão russa.
Levar a guerra para dentro do território russo é visto como um novo patamar neste conflito pelos especialistas, com os EUA a considerarem-no totalmente legítimo face à agressão inicial russa, porque pode levar Moscovo a alargar o leque de alvos militares para os seus misseis de precisão, como, por exemplo, os edifícios em Kiev do Governo, com consequências imprevisíveis na resposta dos aliados de Zelensky.
2 - A presidente da Comissão Europeia, uma das mais acérrimas defensoras do apertar das sanções a Moscovo e do reforço do apoio militar a Kiev para conseguir "a sua vitória militar", avisou a Índia que a resposta da comunidade internacional à agressão militar russa vai definir a futura ordem internacional.
Esta deslocação de Ursula von der Leyen a Nova Deli surge no rasto de outras, como a da ministra dos Negócios Estrangeiros britânica, e o primeiro-ministro Boris Johnson, com o objectivo de fazer implodir os acordos que a Índia tem com a Rússia, de forma a tirar este gigante asiático do lado dos que apoiam ou, pelo menos, não criticam a acção de Moscovo na Ucrânia, como ficou claro na igualmente recente visita do ministro russo Sergei Lavrov à capital indiana.
3 - O Papa Francisco pediu por carta ao patriarca Kiril, chefe da Igreja Ortodoxa Russa, para defender a paz na Ucrânia e o fim da guerra, noticiou o portal de notícias do Vaticano, Vatican News.
Esta iniciativa de Francisco ocorre depois de ter atirado uma "bomba" para este conflito ao cancelar, ou adiar, uma deslocação a Kiev alegando que não faz sentido alguém ir a um país em nome de uma ideia de paz e no dia seguinte estar tudo na mesma, com mais destruição, mais morte e mais longe de um entendimento que o mundo deseja fortemente.
4 - A economia mundial começa a dar mostras de estar a soçobrar face às consequências deste conflito, com uma inflação galopante em todo o mundo, com cada vez maior escassez de alimentos, a fome a alastrar, protestos populares a aumentarem da Europa à Ásia, passando pelos EUA e por África, e com o FMI e o Banco Mundial a publicarem relatórios anuais com preocupantes antecipações de crises económicas e sociais um pouco por todo o mundo...
Entretanto, na frente de combate...
... as forças russas continuam a reforçar a sua estrutura ao longo da extensa linha da frente, perto de 500 quilómetros, com os reforços vindos da região de Kiev, que ocuparam no início da guerra, e com reforços provenientes da Rússia, estando, segundo alguns analistas, mais de 150 mil homens fortemente apoiados por meios aéreos e terrestres.
Do outro lado, estão perto de 60 mil ucranianos, as melhor preparadas e melhor equipadas unidades de combate leais a Kiev, que estão a receber de forma quase ininterrupta, excepto quando os russos conseguem destruir os carregamentos oriundos do oeste da Ucrânia, que chegam ao país pelas fronteiras da Polónia e da Eslováquia, armamento, nomeadamente misseis Stinger e Javelin, Made in USA, mas também artilharia de diversos calibres.
Para já ainda não começou a ofensiva russa terrestre, estando as forças de Moscovo a apostar ainda e apenas nos disparos de artilharia e ataques com misseis de precisão nos objectivos militares ucranianos, visando especialmente as suas defesas anti-aéreas e os depósitos de armamento chegado dos países da NATO.
Os especialistas militares chamam a atenção para o facto de os ucranianos terem criado condições de defesa sólidas ao longo dos últimos anos, tratando-se como se trata de unidades de combate veteranas que estão a combater as milícias independentistas de Donetsk e Lugansk, nma guerra de baixa intensidade que já dura há oito anos e já fez mais de 14 mil mortos entre as populações locais maioritariamente russófilas.
O que quer dizer que a ofensiva terrestre russa só deverá começar quando as suas chefias militares entenderem que os bombardeamentos já danificaram estas defesas quanto baste para reduzir os riscos da infantaria que tem de avançar no terreno disputado palmo a palmo, como sucedeu na II Guerra Mundial, prevendo-se inúmeras baixas de um e do outro lado...
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas der fora o sector energético, gás natural e petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 4 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.