Foi como "mensageiro da paz" que o português António Guterres se apresentou em Moscovo, com a agenda preenchida por dois encontros que podem ser decisivos para o desfecho do conflito na Ucrânia, frente ao experiente e empenhado ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, primeiro, e, depois, face ao Presidente Vladimir Putin, o que os analistas consideram ser um dos dois momentos decisivos desta deslocação do Secretário-Geral da ONU às capitais dos países em guerra, Moscovo, hoje, terça-feira, 26, e Kiev, na quinta-feira, 28.
Com o seu prestígio no fio da navalha, e dependente de um sucesso mínimo para este périplo, Guterres chegou a Moscovo com quase a cabeça a prémio, depois das fortes críticas que ouviu do Presidente da Ucrânia, por ter ido primeiro a Moscovo e só depois voar para Kiev, mas Sergei Lavrov deu-lhe uma ajuda, ao reafirmar a confiança da Rússia nas Nações Unidas como baluarte de um mundo solidário e não sujeito aos ditames de uma só potência, como entende estar a acontecer hoje, com os EUA a mandar a seu belo prazer.
No entanto, ao mesmo tempo que Guterres deixava um recado ao seu interlocutor, o de que é incontornável a existência de um invasor e de um invadido, com "tropas russas na Ucrânia" "sem que existam militares ucranianos na Rússia", ouvia um recado de Lavrov para levar na pasta ao Presidente ucraniano, quando chegar a Kiev, na quinta-feira, aludindo à incoerência negocial e às dúvidas levantadas sobre o papel de Volodymyr Zelensky, porque explicou que a delegação negocial do Kremlin entregou uma proposta escrita há uma semana aos ucranianos mas estes não a fizeram chegar à Presidência.
Lavrov garantiu, nas declarações aos jornalistas que se seguiram ao encontro com Guterres, que Moscovo mantém uma aposta clara nas negociações, lamentando que a parte ucraniana tenha uma postura saltitante, atirando a "bomba" do dia, igualmente nos media mas noutra ocasião, numa entrevista à televisão estatal, que é muito difícil conseguir uma solução negocial quando os EUA inundam a Ucrânia de armamento para, como o Secretário da Defesa, Lloyd Austin, afirmou hoje, enfraquecer militar e economicamente a Rússia através do prolongamento do conflito rearmando de forma permanente as forças de Kiev.
"As consequências desta atitude dos EUA são imprevisíveis", avisou Lavrov, referindo-se ao envio de cargas diárias de armamento sofisticado para a Ucrânia, acrescentando que a Rússia "é favorável a uma solução negociada" ao mesmo tempo que lamentava que Kiev demonstre cada vez mais que não tem grande interesse em perseguir essa mesma solução negociada, sendo que, ao referir que o Presidente Zelensky não recebe as propostas escritas da parte russa, está a admitir que o próprio líder ucraniano esteja a ser boicotado para travar as possibilidades de um calar das armas, acusando directamente os Estados Unidos de serem os indutores dessa vontade de continuar as hostilidades.
Sendo certo que sem se saber o que espera e o que conseguirá Guterres quando chegar, na quinta-feira, a Kiev, em Moscovo deixou uma pequena prenda diplomática demonstrativa de boa vontade, embora isso possa enfurecer ainda mais os seus futuros interlocutores em Kiev, ao pedir uma investigação independente sobre "possíveis crimes de guerra" na Ucrânia, o que admite a possibilidade de nem toda a verdade estar a ser contada pelos que mostram não ter dúvidas sobre a culta da Rússia, mas que Moscovo refuta de forma categórica e aponta mesmo a possibilidade de se tratar de uma ficção criada pelas forças especiais de Kiev para incriminar Moscovo, como em Bucha, o caso mais conhecido de alegados crimes de guerra desde conflito.
"Estou preocupado com os repetidos relatos de possíveis crimes de guerra" na Ucrânia, disse Guterres durante uma conferência de imprensa conjunta com o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov, no final de uma reunião em Moscovo.
O secretário-geral da Organização das Nações Unidas declarou ainda, citado pela Lusa, que o mundo enfrenta hoje "uma situação complexa na Ucrânia, com interpretações diferentes sobre o que lá se passa".
"Mas não há limites para a possibilidade de realizar um diálogo muito sério sobre a melhor maneira de minimizar o sofrimento das pessoas", sublinhou, acrescentando: "Estamos profundamente interessados em fazer tudo o que for possível para acabar com a guerra na Ucrânia o mais rapidamente possível e para minimizar o sofrimento das pessoas e reduzir o impacto em grupos vulneráveis noutras partes do mundo".
Neste mesmo espaço de tempo, Guterres avançou com a possibilidade de criação de um grupo de contacto que integre os dois países em conflito e a ONU de forma a evitar anúncios falhados de corredores humanitários.
Entretanto, na frente de combate...
... as forças russas continuam a reforçar a sua estrutura ao longo da extensa linha da frente, perto de 500 quilómetros, com os reforços vindos da região de Kiev, que ocuparam no início da guerra, e com reforços provenientes da Rússia, estando, segundo alguns analistas, mais de 150 mil homens fortemente apoiados por meios aéreos e terrestres.
Do outro lado, estão perto de 60 mil ucranianos, as melhor preparadas e melhor equipadas unidades de combate leais a Kiev, que estão a receber de forma quase ininterrupta, excepto quando os russos conseguem destruir os carregamentos oriundos do oeste da Ucrânia, que chegam ao país pelas fronteiras da Polónia e da Eslováquia, armamento, nomeadamente misseis Stinger e Javelin, Made in USA, mas também artilharia de diversos calibres.
Para já ainda não começou a ofensiva russa terrestre, estando as forças de Moscovo a apostar ainda e apenas nos disparos de artilharia e ataques com misseis de precisão nos objectivos militares ucranianos, visando especialmente as suas defesas anti-aéreas e os depósitos de armamento chegado dos países da NATO.
Os especialistas militares chamam a atenção para o facto de os ucranianos terem criado condições de defesa sólidas ao longo dos últimos anos, tratando-se como se trata de unidades de combate veteranas que estão a combater as milícias independentistas de Donetsk e Lugansk, nma guerra de baixa intensidade que já dura há oito anos e já fez mais de 14 mil mortos entre as populações locais maioritariamente russófilas.
O que quer dizer que a ofensiva terrestre russa só deverá começar quando as suas chefias militares entenderem que os bombardeamentos já danificaram estas defesas quanto baste para reduzir os riscos da infantaria que tem de avançar no terreno disputado palmo a palmo, como sucedeu na II Guerra Mundial, prevendo-se inúmeras baixas de um e do outro lado...
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas der fora o sector energético, gás natural e petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 4,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.