Ainda respondia às primeiras perguntas dos jornalistas depois de ter estado a conversar com o Presidente Zelensky quando se ouviram os ecos dos dois estrondos dos misseis russos que tinham como alvo uma oficina de material de guerra e esse momento marcou o dia do Secretário-Geral da ONU em Kiev e, provavelmente, todo o seu "tour" como "mensageiro da paz" para a Ucrânia, quando passam hoje 65 dias desde que as forças russas avançaram sobre território do país vizinho.
Estes misseis de precisão, disparados dos navios de guerra estacionados no Mar Negro, que fizeram pelo menos um morto e 10 feridos nas imediações da oficina atingida, foram vistos pela generalidade dos analistas como um "recado" explosivo do Kremlin às Nações Unidas, e ao próprio Secretário-Geral (SG), que, horas antes, tinha voltado a criticar duramente a invasão russa e a pedir uma investigação sólida do Tribunal Penal Internacional aos crimes de guerra de forma a condenar os seus autores, apelando à colaboração dos russos nas investigações.
Guterres fez o "passeio" dos horrores que todos os lideres ocidentais que vão a Kiev acabam por cumprir como uma romaria, passou por Bucha, onde os ucranianos dizem que os russos cometerem graves crimes de guerra, contra a humanidade e, possivelmente, genocídio, enquanto Moscovo tem repetido, exaustivamente, que os corpos filmados nas ruas e encontrados nas valas comuns são, ou vítimas colaterais da guerra, durante os bombardeamentos das forças de Kiev enquanto as colunas russas ocuparam a cidade, ao longo de quase 30 dias, ou foram vítimas de ajustes de contas dos nacionalistas ucranianos por terem mantido relações cordiais com os ocupantes nesse período, como, alegam, o demonstra as braçadeiras brancas - que identificam os russos e os seus aliados neste conflito - que alguns dos cadáveres ainda tinham nos braços.
Numa das paragens nos arredores de Kiev, em Irpin, o chefe da ONU falou da incredulidade do mundo, no século XXI, pelos horrores que ali ocorreram, lembrou que os autores dos crimes de guerra devem ser responsabilizados mas sublinhou ainda que "o maior crime de todos é a guerra em si mesma".
Não deixou nenhuma palavra, pelo menos que fosse reproduzida pelos media presentes, de aproximação à Rússia, enquanto "mensageiro da paz", para facilitar o processo à mesa das negociações onde as Nações Unidas querem recuperar o seu papel estrutural e de onde andaram arredadas nos dois meses de conflito que já passaram.
Como se vê, não está fácil a vida de António Guterres e as duas explosões, duas provocações estrondosas, enviadas pelo Kremlin quando estava em Kiev, mostram que as suas palavras na capital ucraniana, não soaram bem aos ouvidos do Kremlin, o que pode ter, igualmente, hipotecado o sucesso da sua maior aposta, que era, e ainda é, conseguir, juntando os esforços da ONU à Cruz Vermelha Internacional, que russos e ucranianos aproximem posições de forma a que os mais de 500, podem ser mesmo mil, dependendo das fontes, civis que ainda se encontram entrincheirados nos labirintos subterrâneos da metalúrgica Azovstal, possam sair em segurança.
O problema com que está a esbarrar a boa vontade do SG da ONU é que estas centenas de civis entrincheirados na cidade portuária de Mariupol estão junto aos perto de 2.000 elementos do Batalhão Azov, formado por nacionalistas radicais e de génese nazi-fascista, que ainda resistem, embora cercados pelos russos e sem mobilidade alguma, e para os quais as forças do Kremlin não estão na disponibilidade de deixar sair em liberdade, embora já tenham garantido que as suas vidas serão poupadas se se renderem, depondo as armas.
A recusa de deixar sair estes militares do Batalhão Azov por parte dos russos é resultado dos perto de oito anos, desde 2014, em que essa unidade militar manteve sob pressão permanente as regiões de maioria russa, Donetsk e Lugansk, no Donbass, onde morreram 14 mil civis, e onde os russos, com algumas instituições internacionais, como a Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) confirma num relatório de 2018, foram praticados inúmeros crimes de guerra e contra a humanidade, mesmo genocídio tentado, sem que os países ocidentais alguma vez tivessem mostrado qualquer preocupação com isso, o que é, alias, uma das principais justificações de Moscovo para esta invasão da Ucrânia.
Para que este périplo de Guterres possa ter pelo menos um relativo sucesso, vai ser necessário que os civis que estão na Azovstal, e que o Ministério da Defesa da Rússia diz que o Batalhão Azov está a usar como escudos humanos, possam sair livremente das catacumbas, sem que, com eles, passem, disfarçados, os combatentes, especialmente os que os media russos estão a denunciar como pertencendo a países ocidentais, como França e EUA, e que, entre estes, muitos deles mercenários, podem estar oficiais de instrução das tropas ucranianas enviados pela NATO.
O dia calendarizado para a saída dos civis era esta sexta-feira, 29, mas esse objectivo foi sendo abandonado à medida que o dia avançava e, a meio desta manhã, os jornalistas no terreno davam já essa possibilidade como residual ou inexistente, passando esse objectivo para os próximos dias, até porque, como explicou Guterres, a sua missão não é para "andar a aparecer nas televisões mas sim para alcançar resultados sólidos". Ver-se-á nos próximos dias se a tenacidade do SG das Nações Unidas consegue salvar vidas, como disse ser o seu principal objectivo o "mensageiro da paz".
Esta boa vontade de António Guterres está ainda a ser torpedeada no campo de batalha onde os países ocidentais e da NATO persistem na entrega em quantidades gigantescas de armamento cada vez mais sofisticado à Ucrânia, com o objectvo claro e assumido (ver links no fundo desta página) de fragilizar a Rússia, tanto militar como economicamente ao prolongar a guerra indefinidamente, com o Kremlin a repetir os mesmos avisos à navegação, nomeadamente na rápida resposta, incluindo com recurso ao seu arsenal nuclear, se os países da NATO derem passos que possam colocar em risco elementos vitais para a Rússia, que "estão bem identificados" e que, se ocorrer, "levarão a uma resposta sem hesitação".
Ou seja, do campo de batalha não chegam sinais de uma distenção dos ânimos nem demonsração de vontade de levar uma resolução das hostilidades para a mesa das negociações.
Entretanto, na frente de combate
Na quarta-feira, 27, ocorreu um episódio cuja importância no mapa deste conflito ainda não é totalmente claro, com várias explosões sentidas na Transnistria, uma faixa de território na Moldova, com perto de 500 mil habitantes, com fronteira com a Ucrânia, a sul, e que é um auto-proclamada república pró-russa, ocupada por tropas de Moscovo desde o colapso da União Soviética, em 1991.
Os analistas admitem que se trate de uma manobra artificial para levar a Rússia a reclamar esta "república" para o seu universo de influência ou justificar o avanço das suas forças para esta área no sul da Ucrânia. Mas pode igualmente ser o início de uma revolta interna para exigência políticas de natureza ainda desconhecida.
Na frente de batalha, as forças russas continuam a reforçar a sua estrutura ao longo da extensa linha da frente, perto de 500 quilómetros, com os reforços vindos da região de Kiev, que ocuparam no início da guerra, e com reforços provenientes da Rússia, estando, segundo alguns analistas, mais de 150 mil homens fortemente apoiados por meios aéreos e terrestres.
Do outro lado, estão perto de 90 mil ucranianos, as melhor preparadas e melhor equipadas unidades de combate leais a Kiev, que estão a receber de forma quase ininterrupta, excepto quando os russos conseguem destruir os carregamentos de armamento, nomeadamente misseis Stinger e Javelin, Made in USA, mas também artilharia de diversos calibres, oriundos do oeste da Ucrânia, que chegam ao país pelas fronteiras da Polónia e da Eslováquia, na sua maioria por caminho-de-ferro, cuja teia de nós e estações e pontes estão a ser meticulosamente destruídos por misseis de precisão de médio-alcance russos.
Para já ainda não começou a ofensiva russa terrestre, estando as forças de Moscovo a apostar essencialmente, apesar de pequenos avanços de aldeia em aldeia, nos disparos de artilharia e ataques com misseis de precisão nos objectivos militares ucranianos, visando especialmente as suas defesas anti-aéreas e os depósitos de armamento chegado dos países da NATO.
Os especialistas militares chamam a atenção para o facto de os ucranianos terem criado condições de defesa sólidas ao longo dos últimos anos, tratando-se como se trata de unidades de combate veteranas que estão a combater as milícias independentistas de Donetsk e Lugansk, nma guerra de baixa intensidade que já dura há oito anos e já fez mais de 14 mil mortos entre as populações locais maioritariamente russófilas.
O que quer dizer que a ofensiva terrestre russa só deverá começar quando as suas chefias militares entenderem que os bombardeamentos já danificaram estas defesas quanto baste para reduzir os riscos da infantaria que tem de avançar no terreno disputado palmo a palmo, como sucedeu na II Guerra Mundial, prevendo-se inúmeras baixas de um e do outro lado...
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar paara a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas der fora o sector energético, gás natural e petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 4,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.