O sucesso da visita do Secretário-Geral da ONU a Moscovo e a Kiev ganha maior dimensão a cada dia que passa, tendo, nas últimas horas, permitido a saída de mais 300 civis do inferno da Azovstal, na cidade de Mariupol, somando já perto de 500, ficando nas catacumbas desta metalúrgica ainda alguns civis e os combatentes do Batalhão Azov, que Moscovo acusa de ter origens neo-nazis e de contar com largas centenas de mercenários, incluindo israelitas, britânicos e norte-americanos nas suas fileiras.

Nos últimos dias, o destaque mais mediático desta guerra, por causa da visita aos dois países de António Guterres, foi a saída de civis, que podem ser, dependendo das fontes, entre 500 e 1.000, dos subterrâneos da unidade metalo-mecânica Azovstal, na cidade portuária de Mariupol, na costa do Mar de Azov, e parte geográfica da russófona República independentista de Donetsk, no Donbass, totalmente nas mãos das forças russas, à excepção daqueles subterrâneos.

Já esta quinta-feira, depois de pelo menos 500 civis terem deixado a Azovstal, um dos mais bombardeados do mundo desde a II Guerra Mundial, e onde os seus profundos subterrâneos, ao longo de 11 kms2, tornam o local quase impossível de penetrar pelas mais potentes bombas convencionais, as forças russas interromperam as sucessivas e violentas explosões para permitir, durante as próximas 72 horas, uma nova saída dos civis que restam, incluindo pelo menos 30 crianças.

Isto sucede garantindo os russos uma fina malha de verificação da identidade de quem sai para que nenhum dos combatentes do Batalhão Azov consiga sair disfarçado de civil, porque Moscovo acusa estes combatentes de terem morto milhares de civis nas repúblicas russófilas do Donbass, Donetsk e Lugansk, desde 2014, e querem agora, provavelmente, fazer o ajuste de contas, como admitem alguns analistas.

Este é o último reduto das forças ucranianas em Mariupol e o Governo de Kiev informou esta quinta-feira que aquele é o "coração da guerra" e a "prioridade número um" neste conflito, estando em curso um forte empenho político-diplomático para conseguir retirar estes militares das catacumbas da Azovstal, o que deve ser difícil de conseguir devido ao controlo efectivo que os russos possuem na área e no resto da cidade.

A importância desta "operação" de salvamento dos militares do Batalhão Azov é visto como tendo importância estratégica porque alguns media próximos de Moscovo têm estado a noticiar que entre estes elementos estão, alegadamente, oficiais militares e pessoal das secretas ocidentais e da NATO que estiveram a apoiar e a formar as forças especiais ucranianas e agora correm o risco de cair nas mãos das forças russas, o que seria tornar evidente que o temido cenário de confronto directo entre forças da NATO e da Rússia estaria, de facto, já a suceder.

Este cenário, ainda por confirmar e sem evidências de facto no terreno, até agora, a verificar-se, constituiria aquilo que o Presidente dos EUA, Joe Biden, diz desde o início da guerra querer evitar porque - o confronto directo entre a NATO e a Rússia - seria a III Guerra Mundial e mais de meio caminho andado para um confronto nuclear devastador para a Humanidade.

A possibilidade de recurso a armas nucleares, pelo menos as tácticas, que são de menor capacidade explosiva mas substancialmente mais destruidoras que as convencionais mais potentes, está sempre presente, desde logo porque uma derrota para a Rússia nesta guerra é inconcebível e para os EUA, tudo indica que o seja também, portanto, ou evolui para um confronto directo ou acaba num acordo de paz que não melindre nenhum dos lados.

E o Kremlin, que desde o início do conflito tem o seu sistema de defesa nuclear em alerta máximo, anunciou agora que tem a decorrer um exercício no pequeno conclave de Kalinegrado, entre a Polónia e a Lituânia, na costa do Mar Báltico, que inclui o lançamento simulado de misseis com ogivas nucleares.

Ao mesmo tempo, a Bielorrússia, o mais importante aliado de Moscovo, a norte da Ucrânia, iniciou gigantescos exercícios militares que, alegadamente, incluem armas nucleares russas, embora o Presidente bielorusso tenha já vindo garantir que estas movimentações de tropas em larga escala não são uma ameaça para nenhum país vizinho, servindo apenas para aprimorar a sua versatilidade.

A entrada em cena de Lula da Silva e os recados de Kiev à NATO

Quando os especialistas militares admitem, tal como o próprio regime de Kiev, que as forças russas estão a avançar de forma sólida na geografia da guerra, ocupando mais território a cada dia que passa, graças à mudança de planos e à forte concentração de homens e equipamento na linha da frente, no Donbass e no sudeste do país, encurtando a logística a partir da retaguarda até ao território russo, de Kiev chega mais uma forte e agressiva ofensiva diplomática com o ministro dos Negócios Estrangeiros, Dmitri Kuleba, a acusar a NATO de falta de resposta e apoio à altura, porque não consegue "agir como uma aliança", elogiando apenas os esforços dos EUA, do Reino Unido e da Polónia.

Ao mesmo tempo, o embaixador ucraniano na Alemanha, Andriy Melnyk, conhecido pelo seu passado ligado aos radicais da extrema-direita fascista ucraniana, protagonizou um dos mais caricatos episódios da diplomacia mundial em décadas, ao criticar o chanceler alemão, Olaf Scholz pela sua lentidão no envio de apoio militar a Kiev, apelidando-o de "salsicha de fígado resmungona" quando este recusou ir a Kiev depois do Governo de Zelensky ter fechado a porta a uma deslocação do Presidente alemão, Frank-Walter Steinmeier, alegado que este é um "antigo amigo de Putin".

Entretanto, tanto Kuleba como o Presidente Zelensky devem ter gostado pouco de ler a entrevista do ex-Presidente do Brasil, e novamente candidato, e favorito à vitória, nas eleições deste ano, Lula da Silva, que deu uma importante entrevista à revista Time, uma das mais influentes nos Estados Unidos da América, onde coloca como responsáveis pela guerra, a par, os Presidentes da Ucrânia e da Rússia, o que contraria de forma evidente a versão oficial dos países ocidentais, desde logo os EUA, que santificam o primeiro e demonizam o segundo.

Diz Lula da Silva que se cansou de ver Volodymyr Zelensky a ser ovacionado em todo o lado, no Ocidente, especialmente nos palamentos europeus e no Congresso dos EUA, quando "é evidente que este indivíduo é tão responsável pela guerra como Vladimir Putin".

No entender do experiente Lula da Silva, com 76 anos e, provavelmente, o futuro Presidente do Brasil, um dos gigantes económicos do mundo, que, com a Rússia, China, a Índia e a África do Sul, constituem os BRICS, uma organização que foi criada em 2006 para se erguer como uma força multicontinental económica que agora volta a emergir como importante ferramenta de esgrima económica com o Ocidente, Zelensky devia ter investido todas as suas forças para "negociar com Putin de forma a evitar a guerra".

Ao mesmo tempo, Lula criticou o Presidente norte-americano, sugerindo que Joe Biden devia ter investido menos na guerra e mais a evitá-la, com, por exemplo, uma conversa presencial com o seu homólogo russo, que é "o que se espera de um líder responsável".

De volta a Kuleba

O ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmitri Kuleba, na mesma entrevista, via Twitter, onde disse que a NATO não se comporta como uma verdadeira aliança, usou o mesmo tom agressivo para acusar os países da União Europeia que se recusam a apoiar o embargo ao petróleo russo são "cúmplices de crimes de guerra".

"Os países que continuam a opor-se ao embargo do petróleo russo, podemos dizer que são cúmplices dos crimes cometidos pela Rússia na Ucrânia", apontou o chefe da diplomacia de Kiev.

Estas acusações de Kuleba dirigem-se com especial ênfase à Hungria e à Eslováquia, que recusam a proposta da Comissão Europeia de embargo ao petróleo russo devido à dependência total da matéria-prima importada da Rússia, sendo que esta crítica é ainda dirigida aos países, como a Alemanha e a Áustria, que não aceitam o mesmo tipo de embargo ao gás natural, do qual a União Europeia depende actualmente em perto de 50%, sendo apenas de 30% no que respeita ao crude.

O problema da Ucrânia e da alemã Ursula von der Leyen, que lidera a Comissão Europeia, e é uma das mais aguerridas defensoras de crescentes castigos a Moscovo, é que os países europeus entregam diariamente a Moscovo mais de 750 milhões de euros para pagar crude e gás, dinheiro com o qual, aponta Kiev, Putin está a financiar esta guerra.

Para o crude, Bruxelas tem em cima da mesa um plano para se ver livre do petróleo russo até ao final do ano e para o gás estão a ser definidas as regras para obter o mesmo resultado.

O reforço da capacidade de combate de Moscovo

Sem que as autoridades militares russas o tenham desmentido, para a frente de combate, o Kremlin está a enviar largas dezenas de milhares de homens das unidades militares do centro e do oriente da Rússia, de forma a reforçar o poderio militar russo no Donbass, onde decorre aquela que os dois lados já admitiram que é a batalha decisiva desta guerra e que os especialistas miliares definem como sendo a expulsão das forças ucranianas das repúblicas independentistas de Donetsk e Lugansk, e a ligação terrestre entre o Donbass e a Península da Crimeia (ver mapa).

Segundo as informações disponíveis, e dependendo da fontes, do lado russo podem estar entre 120 e 160 mil militares em avanços lentos nas frentes de combate, com reforços permanentes vindo da Rússia, procurando, tanto de sul, como de Norte, avançar e cercar as , entre 80 e 100 mil tropas ucranianas, que se concentram na frente do Donbass.

O foco das forças russas é não só expulsar os ucranianos das "suas" repúblicas do Donbass (Donetsk e Lugansk) como garantir que cortam a capacidade de os aliados de Kiev conseguirem fazer chegar o material militar, desde os mísseis anti-aéreos e anti-carro, Javelin e Stinger, às viaturas blindadas enviadas pelos EUA e aliados ocidentais, para o que estão a empregar centenas de mísseis de longo, médio e curto alcance, mas com forte precisão, como os M-54 Kalibr, que estão a ser disparados dos navios estacionados no Mar Negro e da Crimeia, e os 9K-720 Iskander, de menor alcance mas mais manobráveis porque podem ser deslocados em viaturas de rodas nas imediações do campo de batalha.

Com este armamento sofisticado, os russos estão a visar vias férreas, pontes e aeródromos ou mesmo aeroportos, como sucedeu na passada semana, em Odessa, onde o aeroporto desta que é uma das maiores cidades do país, foi parcialmente destruído porque ali estava armazenada grande quantidade de equipamento militar enviado do exterior pelos países da NATO.

Já os ucranianos, sem capacidade de acção aérea, procuram, através dos meios sofisticados que estão a receber dos seus aliados, com realce para os mísseis antiaéreo e anticarro Stinger e Javelin, cuja eficácia tem forçado as colunas russas a refrear os avanços, e que podem ser o factor de equilíbrio neste conflito, não só atrasar o avanço russo para os seus objectivos como ganhar tempo de forma a desgastar as forças russas a ponto de conseguir que o Kremlin aceite negociar de forma mais vantajosa para Kiev.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar paara a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas der fora o sector energético, gás natural e petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 4,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.