Pequim é o fiel da balança global que pode fazer pender o desfecho da guerra na Ucrânia para o lado de Moscovo ou de Kiev, como o deixou claro na quinta-feira, em Bruxelas, o Presidente dos EUA, Joe Biden, que voltou a mostrar-se esperançoso de que Pequim tome a atitude certa que é, no seu entender, colocar-se ao lado dos norte-americanos e europeus na condenação de Moscovo, deixando claro que não se vai envolver na guerra apoiando Vladimir Putin.

Sempre que Biden se refere à China como um potencial aliado de Moscovo, deixando ameaças de que Pequim sofrerá severas consequências se apoiar militarmente ou financeiramente o seu esforço de guerra, o Presidente chinês manda dizer que a sua posição se mantém firme desde o primeiro dia na forma de neutralidade face aos combates mas igualmente firme na parceria económica e comercial entre os dois países, condenando as sanções ocidentais ao Kremlin que visam asfixiar a economia russa sem suporte na lei internacional.

E nem sequer o argumento que Biden usa para construir a sua retórica agressiva contra a China, que é a ideia de que Pequim tem mais a ganhar com a Europa e os EUA como aliados no campo do comércio global parece tolher a firmeza da posição chinesa, que já veio mesmo dizer que a parceria com Moscovo é "firme como uma rocha", o que parece ser igualmente o entendimento da Índia, outro gigante global que parece não estar a alinhar com a estratégia de isolamento de Putin pelo ocidente, tendo mesmo Nova Deli firmado robustos acordos económicos e comerciais com os russos nas últimas semanas.

Num tom persistentemente altivo, Joe Biden lembrou aos seus aliados, concentrados em Bruxelas, da NATO, da União Europeia e do G7, que, alem dos 27 europeus agrega ainda, nas três organizações, o Japão e o Canadá, que manteve uma conversa telefónica com XI JInping onde "de maneira muito clara" garantiu que o líder chinês entendia as "consequências de ajudar a Rússia".

Disse que não tinha feito ameaças a Jinping mas que lhe apontou o número de empresas ocidentais que deixaram a Rússia devido à guerra na Ucrânia, como que deixando entender que o mesmo poderá suceder com a China, gerando um caos económico se as multinacionais ocidentais deixarem o gigante asiático.

Não se sabe o que Xi JInping disse a Biden, excepto aquilo que a diplomacia chinesa repetiu, no sentido de não se desviar da sua posição de neutralidade face ao conflito mas também de parceiro estratégico da Rússia na área comercial e económica e de forte opositor às ilegais sanções ocidentais impostas à Rússia.

Mas sabe-se que a crise mundial que está a crescer em cima da guerra da Ucrânia e das sanções a Moscovo, as maiores de sempre impostas a um país, é já de tal ordem, com a inflação e o desemprego a dispararem na Europa e nos EUA, com os preços dos alimentos e dos combustíveis em níveis estratosféricos, e com os protestos sociais a multiplicarem-se por toda a Europa, além da fome que começa a grassar em África, na Ásia e mesmo na América Latina mais empobrecida, se o mesmo fosse aplicado à China, com o seu peso de 2ª maior potência económica mundial - a Rússia é a 12ª -, de maior importador mundial de crude, de maior exportador mundial de bens de consumo, com a maior parte da dívida externa dos EUA nos seus cofres, as consequências seriam de tal monta que dificilmente os políticos ocidentais que o fizessem sobreviveriam por muito tempo por entre as convulsões sociais e o desemprego galopante...

As nuances bruxelenses

Mas estes encontros de alto nível em Bruxelas, nesta quinta-feira, 24, trouxeram para o palco global algumas nuances que permitem dar conta de uma certa pressa ocidental em ver resolvida a guerra na Ucrânia.

Isso mesmo pode ser percepcionado no facto de os ricochetes das sanções impostas à Rússia, onde os efeitos são já evidentes na sociedade russa, estarem igualmente a provocar um desastre económico na Europa e nos EUA, com desemprego em crescendo, e a ponto de as instituições financeiras internacionais estarem já a baixar as previsões de crescimento e aumentar as existentes para a inflação e o desemprego.

Face a este quadro, e com alguns países europeus a desalinharem das propostas norte-americanas, como no campo do embargo às importações de crude e gás russos, desde logo a Alemanha, que já disse que vai manter as suas importações, o Presidente norte-americano deu um sinal de amaciar a sua posição ao, questionado pelos jornalistas, não recusar a possibilidade de um acordo de paz entre Kiev e Moscovo passar por cedências territoriais da Ucrânia, desde logo a Crimeia e as repúblicas do Donbass, Donetsk e Lugansk, o que é um ponto relevante em todo o processo.

Apesar de o Presidente Zelensky ter dito há dias que a integralidade territorial da Ucrânia era inegociável, com esta posição dos EUA, que são os, de longe, maiores impulsionadores da resistência de Kiev de forma a prolongar o conflito até onde for possível, espera-se que também o Governo ucraniano possa rever a sua posição e facilitar o caminho para um cessar-fogo imediato e depois um acordo de paz, até porque, no que era inicialmente considerado mais complexo, já foi conseguido: a não entrada da Ucrânia na NATO e a desistência de Putin em ver uma mudança de regime em Kiev.

Isso mesmo ficou expresso nas palavras do Presidente turco, Recep Erdogan, que admitiu avanços nas negociações mas que a questão da Crimeia, que foi anexada pela Rússia em 2014 após referendo popular, e do Donbass, não eram cedências bem vistas por Kiev. Pode ser que agora mudem as ideias pela capital ucraniana depois das palavras de Biden.

Citado pelos média, Erdogan referiu que a Ucrânia está a chegar a acordo com a Rússia na sua relação com a NATO, desarmamento e outros pontos, mas "não lhe parece bem" a negociação do estatuto da Crimeia e do Donbass.

"Nas negociações que prosseguem na Bielorrússia pode-se dizer que há acordos sobre alguns temas, como a NATO e o desarmamento, a segurança colectiva ou o estatuto oficial da língua russa, estado claramente de fora a Crimeia e o Donbass", replicou Recep Erdogan sobre uma possível renúncia territorial de Kiev.

Atacar o ouro russo

Os líderes do grupo dos sete países mais industrializados do mundo (G7) e a União Europeia (UE) manifestaram-se disponíveis para reforçar sanções à Rússia pelo ataque à Ucrânia, nomeadamente limitando transacções em ouro pelo banco central russo.

"Encarregamos os ministros relevantes de uma iniciativa focada em monitorizar a plena implementação de sanções e de coordenar as respostas relacionadas com medidas preventivas, incluindo em relação a transacções de ouro pelo banco central da Rússia", refere o G7 numa declaração divulgada na quinta-feira citada pela Lusa.

A posição oficial surge depois de a Casa Branca ter anunciado que os países do G7 e da UE vão sancionar as transacções envolvendo reservas de ouro da Rússia, para evitar que Moscovo contorne as sanções impostas pelo Ocidente.

Na declaração, publicada após uma cimeira do G7 em Bruxelas no mesmo dia em que se realizam reuniões de alto nível da NATO e dos líderes da UE, os responsáveis do Grupo acrescentam estarem disponíveis "para aplicar medidas adicionais conforme necessário, continuando a agir em unidade".

"Sublinhamos a nossa determinação em impor graves consequências à Rússia, inclusive através da plena implementação das medidas económicas e financeiras que já impusemos. Continuaremos a cooperar estreitamente, inclusive através de contactos com outros governos para adoptarem medidas restritivas semelhantes às já impostas pelos membros do G7", indica o documento.

ONU volta a condenar Moscovo em Assembleia-Geral

A Assembleia-Geral da ONU voltou a aprovar por laga maioria uma resolução condenatória da Rússia, desta feita no campo humanitário, com 140 votos a favor, cinco contra e 38 abstenções, resultado muito semelhante ao conseguido há duas semanas, quando uma ouyra resolução condenando Moscovo pela guerra foi aprovada por 141 votos, cinco contra e 35 abstenções.

Nesta votação da resolução elaborada pela Ucrânia e pelos seus aliados europeus, ficou de fora uma proposta que foi desenhada pela África do Sul que pretendia apoiar e reforçar a ajuda humanitária à Ucrânia sem conter uma condenação expressa à Rússia pelo conflito.

Relações Rússia-EUA em ponto de ruptura

A Rússia ameaçou os Estados Unidos da América com um histórico corte de relações diplomáticas depois de o Presidente Joe Biden ter apelidado o seu homólogo Vladimir Putin de "assassino" e "criminoso de guerra". SE houver mesmo um corte nas relações entre os dois países, são as duas maiores potências militares mundiais que ficam de costas voltadas.

Depois de uma primeira reacção, vinda do porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, onde este diz apenas que se trata de uma declaração que não dignifica o cargo de Presidente dos EUA, o Governo russo aumentou o tom da resposta através do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, admitindo uma ruptura entre os dois países.

Ao mesmo tempo, o embaixador norte-americano em Moscovo, John Sullivan, era chamado ao ministério dos Negócios Estrangeiros russo para lhe ser entregue uma nota de protesto e ser informado por Sergei Lavrov de que as relações bilaterais estão "à beira do colapso"..

Este escalar da tensão, inesperada depois de ter parecido que o Governo russa estaria a preferir desvalorizar as "ofensivas" palavras de Biden, surge num momento em que este está a preparar uma importante deslocação à Europa, que antecedeu de uma nova acusação a Putin, dizendo que o senhor do Kremlin pretende usar armas biológicas na sua guerra na Ucrânia.

Uma eventual consumação desta ruptura diplomática entre Moscovo e Washington tem um significado histórico de relevo porquanto ocorreria 105 anos desde que uma situação similar aconteceu, em 1917, ano em que que os EUA, era Presidente Woodrow Wilson, cortaram relações com a Rússia depois da tomada do poder pelo partido Bolchevique, que viria a dar corpo à comunista União Soviética, que Washington apenas reconheceu 16 anos depois, em 1933, estava Franklin Roosevelt na Casa Branca.

Para já, atravessar essa linha histórica de corte de relações, que significaria que as duas maiores potências mundiais no campo militar, detentoras dos dois maiores arsenais nucleares do mundo, deixariam de comunicar, pelo menos oficialmente, não foi ainda anunciada pelo Kremlin, mas o MNE russo já fez saber que é certo e seguro que essas relações foram severamente prejudicadas pelas declarações de Joe Biden.

O vice-ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Ryabkov, citado pelo site oficial Sputniknews, disse que, perante esta situação, "os EUA têm de parar a escalada das tensões, em termos verbais e na forma como estão a alimentar o regime de Kiev com armamento".

"Têm de parar de gerar ameaças para a Rússia", acrescentou o vice-MNE russo, Sergei Ryabkov, aproveitando para dizer aos jornalistas que se os EUA deixarem de incentivar Kiev, "o que não deve vir a suceder", então "estarão criadas condições para retomar a normalidade das relações" entre a Rússia e os EUA.

E não perdeu a oportunidade para garantir que as sanções dos Estados Unidos e da União Europeia à Rússia, no seguimento da invasão da Ucrânia, que a Rússia apelida de operação militar especial e condena os jornalistas que escrevem a palavra "guerra", ou todos aqueles que se refiram à entrada doas forças russas na Ucrânia como uma "guerra", não terão "qualquer efeito ou influência" na determinação de Moscovo.

A tempestade humanitária

O grito de alerta foi lançado já há muito tempo, considerado que esta guerra começou a 24 de Fevereiro com o avanço dos blindado russos sobre a Ucrânia - pelo Secretário-Geral da ONU, quando este, a 11 de Março, disse que uma avassaladora fome vai atingir a parte mais fragilizada do mundo, milhões de pessoas em África e na Ásia, já começaram a sentir os efeitos na forma de insegurança alimentar, se o conflito se prolongar.

António Guterres sabia do que falava e a fome é já uma realidade para milhões de pessoas na África Oriental, em países como a Somália ou a Etiópia, ou o Sudão, onde 20 milhões dos 45 milhões de pessoas do país estão à beira da fome severa, uma tragédia jamais vista, porque estes países, embora o mesmo suceda em muitos outros, como o Egipto, ou até Angola, indirectamente, dependem quase a 100% dos cereais adquiridos à Ucrânia e à Rússia, que já fecharam as exportações destes bens de forma a garantir a sua própria segurança alimentar em tempos de guerra.

A Rússia e a Ucrânia os campos agrícolas dedicados ao milho, trigo, cevada... da humanidade menos desenvolvida, produzindo 30% dos cereais em todo o mundo, e, ao mesmo tempo, o celeiro dos países mais pobres e a fonte de alimentos fornecidos, normalmente, pelas agências da ONU, como o UNICEF, o PAM ou outras... nas áreas de maior incidência de secas prolongadas, como o Corno de África, ou de, por exemplo, devastações produzidas por pragas de gafanhotos...

Em Angola, por exemplo, onde, tal como no resto do continente, mas não só, a generalidade dos bens da cesta básica estão a encarecer diariamente - o pão, por exemplo, em alguns locais

Contexto

A 24 de Fevereiro, depois de semanas de impaciente expectativa, as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional, criticando fortemente o avanço desta organização de defesa para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de KIev da soberania russa da Península da Crimeia, integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1992, com o colapso da União Soviética.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, em mais de 60%.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios...

Milhares de mortos e feridos e mais de 4 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página, inclusive as suas consequências económicas, como o impacto no negócio global do petróleo.