A última frase com peso estratégico numa sucessão vertiginosa de episódios quentes nesta "telenovela" com epicentro no leste europeu mas com o mundo como palco - basta ver os efeitos que está a ter no sobe e desde nos mercados petrolíferos - foi proferida pelo ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, dirigindo-se às chancelarias ocidentais: "As vossas ameaças e ultimatos não vão levar a nada!".
Depois de, na segunda-feira, o Presidente francês, Emmanuel Macron, ter ido a Moscovo reunir com o seu homólogo russo, Vladimir Putin, em busca de uma redução das tensões, desde logo a diluição da forte e densa presença militar russa próximo da fronteira ucraniana e, agora, em exercícios militares na Bielorrússia, e de o chanceler alemão, Olaf Scholz, ter ido a Washington, para falar com o Presidente Joe Biden, as chancelarias da linha da frente desta crise parece terem respirado de alívio, como o próprio Presidente ucraniano, Volodymyr Zelenskyy, admitiu quando na terça-feira recebeu Macron, dizendo, contudo, esperar para ver acções concretas tendo a soberania ucraniana como ponto de partida inegociável.
O cenário actual onde se desenrola esta crise, que ganhou nova vida nos últimos meses, mesmo que esteja onde sempre esteve desde 2014, compreende um braço-de-ferro de gigantes, trazendo à memória dos escaldantes anos, décadas, de Guerra Fria que terminou com o colapso da União Soviética, em 1989.
A Rússia exige que a Ucrânia renuncie à sua entrada na NATO, o pacto de defesa do Atlântico Norte, que agrega europeus e norte-americanos, EUA e Canadá), e que as suas bases cada vez mais e mais próximas das suas fronteiras, graças à adesão dos países europeus que faziam parte do antigo Pacto de Varsóvia, sob a esfera da então União Soviética, não possuam verdadeira capacidade de ameaçar a soberania russa, sendo a presença militar sob comando de Putin, nas imediações da fronteira ucraniana e na Bielorrússia, advoga Moscovo, uma reacção a esse contexto geoestratégico.
Do outro lado, norte-americanos e aliados europeus, asim como a estrutura dirigente da NATO, exigem que Moscovo não tenha desejos de controlo férreo das decisões soberanas dos países europeus com quem tem fronteiras, nomeadamente sobre a sua eventual adesão à NATO ou até à União Europeia, além de exigirem que a Rússia processa a uma inequívoca redução das suas forças militares que constituem uma "verdadeira ameaça" aos vizinhos. De Washington já veio a convicção de que Moscovo prepara efectivamente um movimento inamistoso sobre a Ucrânia.
A NATO, diga-se, é uma das partes envolvidas com um discurso mais robusto e com mais certezas de que uma invasão russa está iminente na Ucrânia, como o atestam as últimas declarações do seu secretário-geral, Jens Stoltenberg, que pediu mesmo aos europeus para estarem "preparados para o pior".
Isto, porque o responsável máximo da organização entende que a isso leva o facto de a Rússia ter "cada vez mais meios militares na fronteira com a Ucrânia", acrescentando que a NATO está a considerar mesmo formar unidades de combate musculadas no extremo do seu espaço geográfico de influência, que é o leste europeu, junto às fronteiras com a Rússia e a Bielorrússia ou ainda a Ucrânia.
Face a isto, e perante as repetidas ameaças de sanções históricas sobre Moscovo e os seus lideres em caso de avanço das tropas sobre Kiev, Vladimir Putin, na conferência de imprensa de segunda-feira, com Macron, disse a um jornalista francês achar muito estranho que as bases da NATO se multipliquem junto às fronteiras com a Rússia mas depois a retórica ocidental esteja a ser erguida com base numa propalada intenção de avanço das forças russas sobre os seus vizinhos.
Putin tem garantido, tal como o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Lavrov, que não quer guerra com a Nato nem com a Ucrânia, apenas garantir que a sua segurança territorial não é posta em causa com a desmultiplicação de bases nos países limítrofes, a ponto de a Hungria já ter vindo admitir alguma razoabilidade do argumento de Moscovo garantindo que não vai aceitar mais meios militares da organização atlântica no seu território.
Recorde-se que em 2014 as forças russas assumiram a Crimeia, a península a sul da Ucrânia que era parte deste país há décadas, alegando questões culturais e históricas, as regiões de Donetsh e Luhanks, no denominado território de Donbass, no leste ucraniano, na fronteira com a Rússia, com uma populaçõa maioritariamente russófila, continuam sob controlo de forças pró-Rússia.
Numa segunda camada de análise ao cenário de fundo que suporta esta crise está, como o Presidente Joe Biden não se cansa de sublinhar, o incómodo que é para Washington a dependência europeia do gás natural e do petróleo russo, especialmente devido aos Nord Stream 1 e 2, este quase pronto para começar a fornecer gás à Alemanha.
Uma das ameaças de que falava Sergei Lavrov é sobre o nord stream 2, um gasoduto com largas centenas de quilómetros que transportará o gás liquefeito da Rússia para a Europa ocidental, e que, em caso de invasão, será arrolhado indefinidamente.
Essa ameaça é séria, porque, se o Presidente francês foi a Moscovo estender uma mão a Putin, mesmo que uma mão firme, sublinhando que a Rússia é um país europeu e isso não vai deixar de ser a realidade com a qual lidar, Olaf Scholz foi a Washington dizer a Biden que a Alemanha, local de chegada do Nord Stream2, está incondicionalmente com a sua estratégia, colocando Berlin num plano secundário nesta luta diplomática de titãs.
Olhos do mundo postos no leste europeu
Para o resto do mundo, em cima da mesa está o risco de ver a Europa de novo mergulhada numa guerra que se sabe como começará mas que ninguém pode antecipar como vai acabar, estando como estão, dos dois lados da barricada, as duas maiores potências nucleares do mundo - Biden já disse que não vai entrar numa guerra coma Rússia, mas... - e as grandes economias, como a chinesa - Pequim parece estar a posicionar-se ombro com ombro com Moscovo face aos desafios vindos de Washington - e a indiana, estão à espera de ver quando terminam os efeitos desta crise sobre o crescendo dos preços do petróleo.
Para já, a Rússia está a avançar com exercícios militares em conjunto com a Bielorrússia, e no Mediterrâneo, prepara um dos seus maiores exercícios navais desde o fim da União Soviética. Do lado da NATO, milhares de tropas americanas estão a chegar as suas bases nos países do leste europeu, e os restantes países, como a Alemanha, também estão a reforçar a sua presença militar nestas bases, especialmente nos países bálticos, as antigas repúblicas soviéticas da lituânia, letónia e Estónia, que também aderiram à União Europeia, contrariando a vontade de Moscovo.
A esperança de uma diluição da tensão reside actualmente no grupo que assinou o acordo de Minsk, assinado em 2015, sobre o desembrulhar do conflito nas regiões autonomistas do leste ucraniano, sob vigilância da Alemanha, França, Rússia e Ucrânia, no denominado Formato Normandia, que retira os EUA desta equação, revitalizando o olhar europeu sobre um problema estritamente europeu.