A utilização dos misseis norte-americanos ATACMS, um projéctil balístico táctico dos mais sofisticados no arsenal dos Estados Unidos que está a ser fornecido por Washington à Ucrânia é, sem sombra de dúvida, a mais séria ameaça à até agora superioridade militar russa nesta guerra.

E, por isso, há longos meses que o Presidente russo, Vladimir Putin, tem vindo a definir o seu uso na profundidade do território da Federação como uma linha vermelha, a mais carregada linha vermelha até agora traçada no contexto deste conflito.

A resposta russa ainda não é conhecida nesta manha de sexta-feira, 31, oficialmente, porque a autorização dada pela Casa Branca a Kiev para usar estas armas contra as forças russas no território russo pré-invasão de Fevereiro de 2022, só foi anunciada na quinta-feira, 30, mas é de longe dos momentos mais dramáticos em décadas no âmbito do xadrez global jogado entre Moscovo e Washington.

Há, no entanto, indícios plantados no cenário da guerra na Ucrânia que mostram que Moscovo não está a fazer "bluff" quando, repetidamente, assinada que a tal linha vermelha carregada não deve ser ultrapassada, porque se trata de um patamar existencial para a Federação.

O aviso do fiel amigo de Putin

Desde logo o recurso ao frenético vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia e anigo Presidente da Federação, Dmitri Medvedev, que tem assumido o papel do bobo da corte que diz as verdades na cara do rei enquanto faz uma pirueta para distrair.

Medvedev, que é um dos mais fieis de Putin, já por diversas vezes avisou que a resposta nessa situação será devastadora, o que permite englobar nesta expressão todo o tipo de possibilidades, incluindo um contra-ataque tendo como alvos locais miliares estratégicos dos países da NATO na Europa ou no resto do mundo.

E voltou agora a fazê-lo, citado pela TASS, a agência de notícias oficial russa, ameaçando que Moscovo vai atacar todos os locais de origem do lançamento destes misseis e dos seus operadores, clarificando que as forças russas estão cientes de que esses mesmos sistemas estão a ser operados por militares da NATO e não por ucranianos.

Mas o sinal mais sonoro e luminoso de que algo de novo e perigoso veio do próprio chefe do Kremlin, quando, a propósito da autorização do Reino Unido para os ucranianos usarem os seus storm shadow contra alvos russos, Putin avisou que a resposta seria dada contra quaisquer interesses britânicos em todo o mundo, incluindo Londres.

Esta ameaça não foi materializada porque até aqui os misseis britânicos só têm sido usados para atacar territórios russos que foram anexados à Ucrânia entre 2014 (Crimeia) e 2022 (Lugansk, Donetsk, Kherson e Zaporizhia), o que esta dentro do raio de tolerância do Kremlin considerando a guerra em curso e a disputa que continua por estas geografias.

Mas a diferença entre os storm shadow, ou scalp g, a versão francesa do mesmo míssil, e os norte-americanos MG-140 ATACMS é como da noite para o dia, não apenas em alcance, até 500 kms, como a sua capacidade superior de atravessar as defesas antiaéreas russas e escapar ao esmagamento (jam) electrónico.

Uma nova era

E é por isso que a autorização agora dada por Joe Biden para que estes misseis sejam usados pela Ucrânia foge a todos os cenários analisados até agora no âmbito desta guerra.

Alias, recorde-se que por bastante menos, depois do Reino Unido ter anunciado o uso dos storm shadow, Vladimir Putin ordenou a realização imediata de exercícios de testagem da operacionalidade dos sistemas russos de armas nucleares tácticas estacionados no sudoeste da Federação, as regiões mais próximas da Europa Ocidental.

O problema maior neste momento é, como estão a sublinhar vários analistas, que a Rússia, por maior contenção que esteja a ter, e não pretenda uma guerra mundial nuclear devastadora, como Putin o disse, tal como o Presidente dos EUA Joe Biden também o afirmou mais que uma vez, fica sem espaço de manobra retórica e terá de responder ao fogo com o fogo, para não perder a face.

E sim, neste momento a questão essencial não é que o mundo esteja a caminhar para uma guerra mundial que será inevitavelmente nuclear, é saber se ainda vai a tempo de travar este tresloucado avanço para o abismo.

E não se trata de exagero, como muitos analistas admitem, alegando que se trata de uma manobra da NATO pensada para chegar aos limites mais extremos do Kremlin, testando Putin de uma forma que nunca sucedeu antes, mesmo durante a Guerra Fria, porque tanto Putin como Joe Biden já o assumiram antes.

Logo após a invasão russa da Ucrânia, em 2022, ao fim de quase oito anos de conflito interno entre Kiev e as repúblicas independentistas russofonas do Donbass (Donetsk e Lugansk), que começou após o golpe de Estado de 2014 em Kiev que depôs o Presidente pró-russo Viktor Yanukovich, Putin e Biden admitiram que era fundamental evitar um confronto directo entre a NATO e a Rússia porque isso levaria, inevitavelmente, a um Armagedão nuclear.

E esta situação actual é, precisamente, como adverte Medvedev, um confronto directo entre a NATO, ou alguns países da NATO, porque alguns deles, como a Itália, por exemplo, recusam o uso das suas armas para atacar a Rússia em profundidade, e a Rússia, o rastilho já definido por Moscovo e Washington que levará o fogo ao barril de pólvora global.

Alias, como avisou o analista britânico Alexander Mercouris, nem sequer durante as longas décadas de Guerra Fria a então URSS e os EUA chegaram ao ponto de fornecerem armas a países ou rebeldes para atacarem directamente o outro país, embora isso tenha sido a norma em cenários fora de portas, como o Afeganistão ou o Vietname.

Para fixar estão as palavras de Dmitri Medvedev à TASS: "Todos o equipamento militar e especialistas militares que estão a combater a Rússia serão destruídos, seja em território da Ucrânia, seja no territórios dos países da NATO se tiverem ligações aos ataques dirigidos a território russo".

E este passo agora dado por Biden, que, na verdade, é quem conta neste xadrez, porque as palavras dos lideres europeus da NATO são pouco relevantes para Moscovo, é de tal forma arriscado que até The New York Times acaba de publicar uma peça onde adverte que se trata de "uma nova realidade".

Uma fonte sénior na Administração Biden disse ao jornal que mais que "uma nova realidade" esta decisão do Presidente norte-americano representa avançar para uma nova era" porque pela primeira vez um Presidente autoriza que armas "Made in USA" sejam usadas para atacar directamente a maior potência nuclear planetária.

O jornal norte-americano, considerado como aquele que melhor chega aos corredores do poder na Casa Branca, nota que esta decisão de Biden, permitindo o uso dos ATACMS pelos ucranianos para infligir ataques às forças russas na região de Belgorod, no norte de Kharkiv, território reconhecido pelos EUA da Federação, foi "tomada sob grande pressão".

E a que "grande pressão" se refere The New York Times? A resposta não é dada de forma directa pelo jornal, um dos mais influentes do mundo e, especialmente nos EUA, mas o contexto de que emergem mostra a origem dessa pressão.

A força dos neo-conservadores

Primeiro foram os denominados neocons ou neoconservadores radicais, com laivos de extremismo religioso e anti-Rússia no Congresso, tanto democratas como republicanos, exigindo maior intervenção dos EUA para derrotar Moscovo na Ucrânia, sendo que entre estes elementos pontificam alguns evangélicos para quem o Armagedão é uma opção razoável por estar plasmado nas escrituras sagradas.

Depois foi a antiga vice-secretária de Estado, Vitoria Nuland, que foi afastada pela Casa Branca por extremismo excessio, sendo o falcão de guerra de garras mais afiadas o incentivo à derrota militar da Rússia custe o que custar, que voltou a terreiro público para exigir à Casa Branca a autorização que agora foi, efectivamente, dada por Joe Biden.

E, por fim, tal como Nuland, segundo os jornais The New York Times e The Washington Post, o próprio secretário de Estado, Antony Blinken foi "denunciado" como estando a organizar um poderoso lobby nos corredores da Casa Branca para levar o Presidente a dar este passo perigoso e para muito insensato.

Uma das razões para que esta insensatez tenha cada vez menos oposição no Ocidente, embora alguns oficiais seniores do Pentagono tenham já feito saber, de forma anónima, e citados pelos media norte-americanos, estarem "profundamente preocupados" com a actual evolução do confronto com Moscovo, é que os EUA e os seus aliados europeus não podem deixar a Rússia vencer na Ucrânia.

E uma vitória russa está cada vez mais próxima, porque as linhas de defesa ucranianas decompõem-se mais e mais a cada dia que passa, apesar do reforço em armamento que está a ser proporcionado pelos países aliados.

A questão que está a balancear na linha da frente é mais que a perda ou avanços territoriais entre trincheiras, é de perdas e ganhos estratégicos no âmbito da disputa global por uma nova ordem mundial que russos, chineses e indianos, entre outros do Sul Global, querem que acabe com a hegemonia do Ocidente Alargado/EUA.

Nas trincheiras do leste ucraniano está em disputa muito mais que a Ucrânia, é a hegemonia norte-americana global que se pode esfumar com uma vitória russa, e é por isso que os países ocidentais estão a correr mais riscos de abrir a porta a um Armagedão nuclear.

Porém, há um elemento de que todos têm conhecimento mas que o melindre do contexto leva o Ocidente Alargado a ignorar até onde for possível, mesmo correndo riscos de irreversibilidade, que é o facto de não ser, simplesmente, possível derrotar uma potência nuclear e muito menos a mais poderosa potência nuclear do mundo, embora muito próxima dos Estados Unidos, superando o "arqui-inimigo" apenas em número de ogivas e, recentemente, nos avanços tecnológicos ligados aos veículos hipersónicos de transporte de ogivas nucleares múltiplas.

Espera-se a primeira reacção directa de Vladimir Putin, ou dos seus mais representativos porta-vozes para a arena internacional, o seu porta-voz oficial do Kremlin Dmitri Peskov, ou o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov. (Ver links em baixo nesta página).