Ao longo dos três meses, o conflito em Gaza, renascido com intensidade historicamente sem paralelo a 07 de Outubro, quando o braço armado do Hamas, as Brigadas Al Qassam, protagonizaram um audaz e inesperado, e mortífero, assalto ao sul de Israel, o mundo tem estado em suspenso de uma eventual faísca que possa rebentar com o barril de pólvora do Médio Oriente, mas esta semana, se a chama pode ter já chegado ao rastilho.

Primeiro, na terça-feira, a Mossad, a organização secreta israelita para as operações especiais no exterior, abateu, com um drone, Saleh al-Arouri, fundador e actual número dois do Hamas, que estava em Beirute, a capital do Líbano, gerando uma vaga ruidosa de ameaça de retaliação não só por parte do Hamas como também do Hezbollah, o mais sólido e poderoso aliado armado do Irão na Palestina/Líbano.

Depois, já na quarta-feira, para a fogueira do Médio Oriente/universo islâmico, foi atirado o atentado que, com duas explosões programadas para fazer o maior número de vítimas possível, ceifou a vida a mais de 100 pessoas na cidade de Kerman, durante uma cerimónia no âmbito do 4º aniversário da morte de Qassem Suleimani, o general-herói que comandava a Guarda Revolucionária iraniana, através de um drone norte-americano, em Bagdad, capital iraquiana, em 2020.

A este atentado duplo, junto ao túmulo do herói iraniano, que o Presidente iraniano, Ebrahim Raisi, se apressou a acusar Israel e EUA da sua autoria, directa ou indirecta, mas que foi reivindicado pelo `estado islâmico", seguiu-se, na quinta-feira, um novo ataque com drones dos EUA na capital iraquiana, que vitimou Mushtaq Taleb al-Saidi, comandante de uma milícia xiita, aliada e apoiada pelo Irão, que actua há vários anos no Iraque visando especialmente alvos norte-americanos e ocidentais ainda presentes neste país.

Três atentados que os analistas não desligam do que está a acontecer em Gaza, onde a invasão israelita, precedida de uma intensa campanha de bombardeamentos, por artilharia pesada e aviação, já fez mais de 22 mil mortos e 50 mil feridos, a maioria crianças e mulheres.

Historicamente este tipo de atentados são a faísca que incendeia o rastilho do barril de pólvora... e o Médio Oriente é historicamente o mais instável dos barris de pólvora geográficos em todo o mundo, seja por causa das tensões geopolíticas (Israel-Irão-Líbano) e geoeconómicas (35% do petróleo mundial sai dali diariamente), mas também religiosas, face ao conflito histórico entre xiitas (Irão, Síria, Iraque...) e sunitas (Arábia Saudita, EAU, Turquia...).

Alguns analistas admitem que a visita apressada, a 4ª em três meses, do chefe da diplomacia norte-americana, Antony Blinken, a Israel e, entre outros, ao Egipto, à Turquia, Jordânia, Qatar e à Arábia Saudita, tem como pressuposto a iminência de uma expansão descontrolada do conflito de Gaza para a restante geografia do Médio Oriente, da qual, a acontecer, dificilmente os EUA poderiam ficar de fora.

No topo das áreas mais quentes está, desde logo, a incandescente fronteira israelo-libanesa, com intensa presença, no lado libanês, das forças do Hezbollah, que podem ter até 100 mil combatentes, fortemente armados pelo Irão, e treinados ao longo de anos para uma guerra aberta com Isarel.

Atentos a esta possibilidade, os comandantes militares em Telavive têm feito deslocar para esta fronteira um forte contingente militar, reforçando as capacidades aéreas e as unidades especiais de forças especiais, o que, em certa, medida, explica a redução de efectivos em Gaza, face a um iminente, e cada vez mais provável, depois dos atentados recentes em Beirute, Kerman e Bagdad, recrudescer das acções do Hezbollah, que, na verdade, foram contantes, apesar de baixo perfil, desde 07 de Outubro, contra as posições do lado israelita da fronteira.

Como recorda The Guardian, em pano de fundo a esta visita de Blinken ao Médio Oriente está claramente no topo a possibilidade crescente da evolução de conflito local em Gaz apara guerra regional, que ameaça conseguir aquilo que nunca sucedeu, que é colocar, pelo menos, e para já, no plano comunicacional, Irão, Turquia e Arábia Saudita lado a lado contra as atrocidades israelitas em Gaza e o apoio ilimitado norte-americano a Israel.

Mas está igualmente subjacente nos objectivos desta visita a crescente vaga de protestos populares contra a mortandade provocada por Israel em Gaza, o que é um problema para a Administração Biden, já em ano eleitoral e com cada vez mais sondagens a dar a vitória nas eleições de 05 de Novembro a Donald Trump, se este se conseguir livrar dos muitos processos judiciais (ver links em baixo nesta página) que enfrentará até lá.

Para já, o foco imediato das preocupações da comunidade internacional sobre a probabilidade de um alastrar do conflito está, evidentemente, na fronteira israelo-libanesa, onde o Hezbollah mostra crescente disponibilidade para uma guerra aberta com Israel, e no Mar Vermelho, onde a milícia Houthi, do Iémen, apoiada pelo Irão, tem criado o caos na travessia marítima do Oceano Índico para o Canal do Suez, com ataques imparáveis à navegação, incluindo petroleiros e cargueiros, obrigando a recorrer à via mais longa e cara do sul do continente africano.

Mas há ainda as situações tumultuosas na Cisjordânia, fronteira com a Jordânia, país onde cresce a crítica a Telavive apesar dos acordos de não-agressão existentes, e nos Montes Golã, fronteira com a Síria, onde Damasco tem atravessada na garganta a ocupação de dois terços desta região por Israel desde 1967, no refluxo da Guerra dos Seis Dias, e onde são comuns as acções miliares israelitas e das milícias islâmicas ali presentes, incluindo o Hezbollah e a Jihad Islâmica, ou mesmo as brigadas Al Qassam, o braço armado do Hamas.

Face a este cenário de rara perigosidade para o mundo, a Secretária de Estado dos EUA, que corresponde ao Ministério das Relações Exteriores, está consciente das dificuldades inerentes a esta visita de Blinken à região.

"Não estamos à espera que as conversas sobre estes assuntos sejam fáceis", disse o porta-voz de Blinken, Matthew Miller, citado por The Guardian, , acrescentando este que "há assuntos regionais duros de resolver e escolhas difíceis que devem ser feitas", mas, admite ainda, "o secretário Blinken acredita que é responsabilidade dos EUA liderar os esforços diplomáticos para superar os desafios que temos pela frente".

Os EUA, que têm ainda uma forte presença naval no Mediterrâneo Oriental, com um porta-aviões e vários submarinos e navios de guerra, para efeitos de dissuasão do Irão, claramente, têm de lidar não só com os seus aliados regionais como ainda com a Turquia, que é o segundo maior exército da NATO, e que tem sido, ao lado do Irão, o mais acérrimo crítico de Israel, com o seu Presidente, Recep Erdogan, a acusar o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyhau, de ser "pior que Hitler" na forma como está a conduzir o "genocídio do povo palestiniano em Gaza".

O pior resultado para os EUA desta situação crítica no Médio Oriente é que todos os seus esforços para contrariar a crescente influência de Moscovo e Pequim na região está a ir por água abaixo, especialmente a aproximação entre sauditas e israelitas, aproximando, pelo contrário, como nunca tinha acontecido, a Turquia ao Irão e o Irão à Arábia Saudita, num remoinho geoestratégico que pode ser excruciante para a diplomacia norte-americana, mas também a destruição do equilíbrio de forças no Médio Oriente em desfavor de Israel.

Pretória acusa Telavive de genocídio

Paralelamente a este contexto local, Blinken tem ainda em mãos a gestão da reacção da comunidade internacional ao "genocício em curso em Gaza" como entende estar a acontecer a África do Sul, que avançou com uma acusação com esse teor para o Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) das Nações Unidas.

Reagindo a essas acusações, o porta-voz das Secretaria de Estado (Departamento de Estado), Matthew Miller, veio assumir que os EUA não encontram quaisquer sinais ou evidências de genocídio em Gaza, desligando-se claramente do ponto de vista de Pretória.

"Não estamos a ver nos EUA quaisquer actos que possam constituir práticas de genocídio em Gaza", disse este responsável, respondendo a jornalistas, na quarta-feira, antecipando a 4ª visita de Antóny Blinken ao Médio Oriente.

A posição oficial dos EUA é ainda a de que, segundo o porta voz do Conselho Nacional de Segurança, "não existe qualquer mérito na acção sul-africana", sendo esta ainda "contraprodutiva e sem bases de sustentação".

O mesmo não pensa o Governo sul-africano que, entre as várias declarações sobre este assunto, lembra o número de mortos entre os civis palestinianos em Gaza, mais de 22 mil e mais de 55 mil feridos, a indiscriminada forma de atacar os alvos do Hamas, deixando ainda uma comparação dilacerante entre as vítimas civis da guerra de dois anos na Ucrânia, menos de 10 mil, e os de Gaza, em apenas três meses.

Alias, Pretória tem sido uma das vozes mais em foco no continente africano contra a acção de Isarel em Gaza, sendo historicamente também um aliado próximo das aspirações palestinianas à constituição do seu Estado soberano na Palestina.

Em pano de fundo a esta posição, está a declaração inequívoca de Nelson Mandela ainda na década de 1970, assumindo uma ligação estreita e inseparável entre os então objectivos de acabar com o apartheid na África do Sul e a libertação da Palestina total e absoluta, considerando que sem esse facto conseguido, a luta dos sul-africanos estaria sempre incompleta.